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Crimes do passado perseguem o Afeganistão

Vista de Bamiyan, onde o movimento radical islâmico Talibã destruiu, em 2001, duas antigas estátuas de Buda. Foto: Giuliano Battiston/IPS
Vista de Bamiyan, onde o movimento radical islâmico Talibã destruiu, em 2001, duas antigas estátuas de Buda. Foto: Giuliano Battiston/IPS

 

Cabul, Afeganistão, 19/3/2014 – O Afeganistão se prepara para realizar eleições presidenciais no dia 5 de abril, e muitos se perguntam se o próximo governo também vai varrer para debaixo do tapete as maciças violações dos

direitos humanos cometidas no país. Ativistas da sociedade civil em Bamiyan – capital da província central de mesmo nome, na qual o movimento radical islâmico Talibã destruiu, em 2002, duas antigas estátuas de Buda – parecem especialmente interessados no que os candidatos têm a dizer sobre a “justiça transicional”.

Este termo se refere ao conjunto de medidas judiciais e políticas, incluindo ações penais, criação de comissões da verdade e reformas institucionais, que um país implementa para reparar violações dos direitos humanos, segundo o Centro Internacional para a Justiça Transicional.

“A justiça é necessária para alcançar a paz”, afirmou à IPS Ismail Zaki, coordenador regional da Rede da Sociedade Civil e dos Direitos Humanos (CSHRN). “Sem justiça, a paz não é nem real, nem forte, nem estável. Eu diria que a justiça, que também implica prestação de contas por crimes passados, é inclusive mais importante do que a paz”, destacou. Qualquer processo, para ser efetivo, deve incluir um reconhecimento de crimes passados, argumentou Said Hussein Shah Hussainy, assistente da unidade de observação e investigação da Comissão Independente de Direitos Humanos do Afeganistão (AIHRC).

Tanto Zaki quanto Hussainy opinaram que é importante revisar e implantar o governamental Plano de Ação pela Paz, Reconciliação e Justiça, de 2005, destinado a revisar o histórico do país em direitos humanos. Adotado pelo presidente Hamid Karzai e apoiado pela comunidade internacional, o plano estabelece cinco eixos de ação, incluindo a busca da verdade, a reconciliação e medidas para que os responsáveis prestem contas.

Mas até agora não foi plenamente implantado, disseram os pesquisadores Niamatullah Ibrahimi e Emily Winterbotham no estudo Preso entre o passado e o presente, baseado em entrevistas com sobreviventes de três massacres no Afeganistão. “A estratégia favorita, tanto do governo afegão quanto da comunidade internacional para abordar o legado das passadas e presentes violações dos direitos humanos e crimes de guerra no país, foi a de varre-las para debaixo do tapete”, apontou Sari Kouvo, cofundador e codiretor da Rede de Analistas do Afeganistão, com sede em Cabul, no documento intitulado Um Plano Sem Ação, publicado em julho de 2012.

A organização Human Rights Watch (HRW) enviou um questionário aos 11 candidatos presidenciais afegãos sobre temas de direitos humanos. Os poucos que responderam se mostraram dispostos, pelo menos no papel, a mudar o curso da justiça transicional. Suas respostas foram divulgadas no dia 9 de fevereiro.

Abdalá Abdalá, um dos principais candidatos e chefe da Coalizão Nacional do Afeganistão, declarou à HRW que “a justiça transicional é um dos discursos mais importantes em nossa sociedade”. Mas também advertiu que, para evitar “um uso político indevido” do conceito e impedir o “fortalecimento do espírito de vingança, é necessário criar um apropriado contexto cultural, moral e legal por meio do qual se possa realizar uma discussão”.

Fora ele, apenas outros três candidatos (Qutbuddin Helal, Daoud Sultanzoy e Qayum Karzai) responderam o questionário da HRW. Qayaum Karzai, irmão mais velho do presidente Hamid, mais tarde renunciou à candidatura para apoiar outro candidato. Helal, vinculado ao partido radical islâmico Hezb-e-Islami, afirmou à HRW que é “importante responsabilizar e punir os violadores de direitos humanos”, acrescentando que devem ser “processados em caso de existir evidência verossímil, para que se convertam em lição para outros”.

Porém, representantes da sociedade civil temem que os chamados por uma justiça transicional possam exacerbar as divisões se não for feita de forma adequada. “Antes de trabalhar na justiça transicional, deve haver um governo legítimo e respeitado com pleno controle do país”, destacou à IPS Ali Jan Fahim, membro da CSHRN em Bamiyan. “Só então, quando os senhores da guerra já não estiverem no poder, será possível trabalhar nisso. Se o fizermos antes, nos matarão, ou pelo menos criarão mais instabilidade”, alertou.

Por sua vez, Amir Sharif, professor de sociologia na Universidade de Bamiyan, disse à IPS que “hoje os criminosos e seus partidários estão no governo. Têm poder. Devemos nos focar mais na unidade nacional. Poderemos discutir um tribunal especial, seja nacional ou internacional, mas só quando houver um governo central, forte e funcionando, aceito pela maior parte da população”, ressaltou. Por sua vez, Zaki enfatizou que, “antes de abordar o tema da justiça transicional, é preciso tempo. Ainda não é o momento. Temos que deixar que a ideia tome forma na mente das pessoas. Devemos trabalhar nele cuidadosamente”.

Entretanto, alguns afirmam que a justiça transicional é impraticável no Afeganistão devido à dinâmica interna do poder, a arraigada cultura de impunidade e a falta de vontade da comunidade internacional. “Duvido que ocorra no futuro. Os criminosos são mais poderosos agora, e os que sofreram abusos não têm meios para exigir justiça”, enfatizou à IPS o diretor da organização não governamental Shuhada, Gholam Hussein.

Por sua vez, Ali Wardak, professor afegão no Centro de Criminologia da Universidade de Glamorgan, da Grã-Bretanha, tem outra opinião. Ele disse à IPS que “a investigação da AIHRC, intitulada Um Chamado à Justiça, demonstrou que a população afegã quer que seja feita justiça e se preste contas, e sabemos que, se não há justiça, não pode haver paz. O passado não pode ser mudado. Nunca é tarde para enfrentá-lo”. Envolverde/IPS