Repressão e apreensão tomavam as ruas. Foto: BR UNICAMP IFCH/AEL BNM
Repressão e apreensão tomavam as ruas. Foto: BR UNICAMP IFCH/AEL BNM

A ditadura levou à fuga da política de jovens e de pessoas que poderiam ter ajudado o Brasil a ter quadros políticos melhores.

Cinquenta anos atrás eu era um estudante de 1º ano primário, estava começando a ter consciência das coisas no meu entorno quando ouvi pela primeira vez uma referência ao golpe militar de 1964. Já no segundo semestre daquele ano eu estudava em um Centro de Treinamento de Professores mantido com verbas da Unesco (e fechado poucos meses depois sob a suspeita de ser um “centro de formação de comunistas”), em Inhumas, uma cidadezinha perto de Goiânia. Todos os dias após o almoço eu andava algumas quadras até a casa de minha professora e aguardava na varanda que ela viesse para tomarmos o ônibus da escola. Em um desses dia ouço algumas vozes vindo de dentro da casa:

“Pai, você não vai fazer a barba?”, perguntava a filha professora.

“Só faço a barba no dia em que o Castelo Branco cair!”, exclamou em alto e bom som o pai.

Na minha cabeça de criança veio a imagem de um grande castelo, ainda por cima branco, sólido e inatingível. “Ele não vai fazer a barba nunca mais”, pensei. Não sei se ele fez a barba nos dias ou semanas seguintes, mas sei que nos 26 anos seguintes aprendi que aquele “Castelo Branco” não era como nos contos de fada, mas sim uma a representação de uma sombra que assolou toda a minha geração. Para mim a mais desoladora herança daquele fatídico 31 de março (muitos dizem que foi 1º de abril) é a fuga da política por gerações de jovens, pessoas que poderiam ter ajudado o Brasil a ter quadros políticos melhores, mais bem intencionados e preparados, mas que jamais chegaram a ser políticos porque o militares fecharam as portas para uma militância idealista e não apenas ideológica.

Algumas das melhores cabeças da geração nascida nos anos 1950 jamais se aproximaram da política, e os motivos foram os mais diversos, mas sempre relacionados ao cerceamento e ao perigo que a política oferecia. Claro que há pessoas que seguiram a militância, muitas com riscos para a própria vida e de seus familiares, e algumas de fato morreram. Apenas uma minoria encarou os riscos e seguiu em frente.

Na década de 1970/80 essa geração dos anos 50 tornou-se adulta, em um cenário de repressão política e liberação sexual. O Brasil daquele tempo era completamente dividido em feudos e alienado de sua realidade.

Em 1974 o regime me empurrou para uma grande aventura. Era o ano que eu mais temia, tive de me alistar para o serviço militar e me apresentar para servir. Acabei indo embora de São Paulo, fui primeiro para Brasília e, de lá, para Belém, em uma estrada ainda de terra cortando a o norte de Goiás e o Pará em direção a uma terra desconhecida, a Amazônia. Foram muitos meses de andanças entre Pará e Maranhão, com pouco dinheiro e muita curiosidade. As histórias se sucediam com as paisagens, na Gurupi de então, uma vila de poucas casas, tive dor de dente. Me indicaram um dentista no final de uma fileira de casinhas. Lá fui, como a dor era forte, topava qualquer coisa. Pela janela vi um cara debruçado sobre um “paciente” e pedalando uma engenhoca. “Espera um pouco”, ele disse. Nos poucos minutos de espera chegaram alguns presentes para o “doutor”, ovos, uma galinha um cacho de bananas.

Na minha vez ele me olhou e perguntou: “Quer que arranque ou que destampe?”.

Destampar era abrir um buraco para aliviar a dor. Pedi para destampar, na esperança de ter um dentista mais bem equipado em São Luiz, para onde eu pretendia ir. Depois de ele me fazer beber um copo de cachaça à guisa de anestesia, entabulamos uma conversa…

Eu expliquei que estava passando um tempo fora de São Paulo por conta do Exército, e esse perfil de fugitivo nos aproximou. Dentista formado no Rio de Janeiro, veio para o Maranhão fugido da polícia…

“Dei um mau passo na vida! Matei um cara. Eu não queria, mas o cara morreu, então não teve jeito, tive de me mandar. Quando cheguei aqui, uns anos antes, o dentista que era dono dessa cadeira tinha morrido, agora eu sou o dentista daqui!”

Depois de tantos anos ainda me lembro daquele dia!

Nos anos seguintes consegui ir levando, mas demorei a voltar para São Paulo. Primeiro fui para o sul, Uruguai e Argentina, depois para Belo Horizonte e só voltei mesmo em 1978 quando passei no vestibular para jornalismo na USP. A matrícula foi feita com um número de reservista aleatório e por procuração. Quem foi lá para não dar na vista foi minha mãe.

Já na USP veio a vida de estudante, muita cerveja no Rei das Batidas, muitas reuniões políticas, as festas do pessoal da Libelú, e a invasão do CRUSP (Conjunto Residencial da USP), que estava meio abandonado e com um monte de apartamentos vazios. A polícia cercou o prédio, ligou luzes, sirenes, passou a noite azucrinando, mas não invadiu. Outro dia me ligou uma repórter d’O Globo perguntando o que eu achava da minha filha estar no movimento que invadiu a reitoria… Eu queria ter visto a cara dela quando expliquei que invadi o CRUSP em 1980. A voz tremeu…

Não entrei para a luta armada, não gosto de armas. Tive amigos que entraram, conheci gente que sumiu. Meu pai mesmo, repórter da Veja em 1969 (ainda nos tempos do Mino Carta), foi para o México entrevistar os 15 presos políticos libertados em troca do embaixador norte-americano Burke Elbrick, passou vários dias gravando entrevistas e foi levado para o DOPS da escada do avião, quando desembarcou. A matéria inteira publicada na edição de Veja foi: “Nosso repórter Silvio Sena esteve no México entrevistando os presos trocados pelo embaixador sequestrado Burke Elbrick, todos estão bem e gozam de boa saúde”.

Nos anos 1980 me tornei jornalista dedicado a pautas de economia. Uma forma de fugir um pouco da política, de tratar de temas que supostamente não tem nada a ver com o exercício da democracia. Ledo engano, o país lançado no caos da hiperinflação e governos incapazes de oferecer um horizonte de esperança. Em 1984 estava à noite, na Praça da Sé, à espera, voto a voto, da aprovação da “emenda Dante de Oliveira”, que restabeleceria a eleição direta para a Presidência da República. Foram 298 votos a favor, 65 contra, 113 ausências e 3 abstenções. Apesar da maioria absoluta a favor, não se conseguiu os 320 votos que dariam os dois terços que a Constituição exigia. Em meio a uma imensa decepção, atrás de mim estava o então prefeito Mario Covas e o então presidente da Cetesb, Rogê Ferreira, saímos todos com lágrimas nos olhos e profundamente decepcionados com os deputados que fugiram, se ausentaram e se omitiram na hora do voto. É bom lembrar que alguns deles ainda rondam as urnas por ai.

Os anos se seguiram e a ditadura acusou o golpe da campanha das diretas. Veio a candidatura Tancredo Neves, que seria um tapa-buraco enquanto a democracia não vinha. Já jornalista e trabalhando na France Presse, no velho edifício dos Diários Associados, na rua 7 de abril, fazia os plantões da madrugada aos finais de semana quando o telex (para quem não sabe era como as notícias viajavam) começou a tilintar: “Morre Tancredo Neves”

Era a notícia esperada a semanas, não era surpresa para nenhum jornalista na ativa na época, só que era uma “barriga”. Alguém apressado tinha deixado a notícia pronta no telex, apenas para disparar no caso da real morte do presidente. Liguei para colegas para checar e passei o resto da noite desmentindo a notícia! O Congresso da Guatemala, que estava em sessão por algum motivo, aprovou uma moção de luto por Tancredo dias antes de sua morte. Quando de fato ele morreu, eu chorei! Não pela Morte de um político, mas pela má sorte que turvava o horizonte do Brasil. O país seria ainda dirigido por Sarney, teria um Collor vencendo Ulisses Guimarães, Lula e Mário Covas, teria ainda anos até retomar de fato a democracia.

Hoje quando vejo nas redes sociais e na mídia tanta gente defendendo voto nulo, apoiando golpes de Estado e pregando o ódio me pergunto o quanto está fazendo falta os 26 anos em que não tivemos democracia, os políticos que não se tornaram, o aprendizado de anos de experiências em gestão pública que não tivemos. Que país seríamos?

Mas tudo isso está no passado. Em um tempo diferente. Acredito que agora a pergunta deve ser: Que país queremos ser?

* Nascido em 1956, o filho e neto de jornalistas Dal Marcondes é diretor da Envolverde e especialista em meio ambiente. Seu texto faz parte de uma série de artigos que o site de CartaCapital publica sobre os 50 anos do golpe-civil militar de 1964.