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Como entrar no inferno do qual tantos querem sair

 

Mais de 600 mil pessoas fugiram de suas casas em todo o país. Só na capital foram mais de 177 mil. Foto: EU/ECHO Jean-Pierre Mustin/cc by 2.0.
Mais de 600 mil pessoas fugiram de suas casas em todo o país. Só na capital foram mais de 177 mil. Foto: EU/ECHO Jean-Pierre Mustin/cc by 2.0.

 

Nações Unidas, 7/4/2014 – Ter acesso à população da República Centro-Africana – que sofre o que a Organização das Nações Unidas (ONU) chama de “limpeza étnico-religiosa”, mais uma estrutura estatal inexistente e uma “brutalidade sectária inaceitável” –, é uma tarefa difícil e às vezes mortal para os trabalhadores humanitários. “Para todos nesse país, a segurança é um desafio, porque a situação é muito instável e violenta. No ano passado morreram nove trabalhadores humanitários”, disse à IPS, de Bangui, Judith Léveillée, vice-representante do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) na República Centro-Africana.

“Nunca vi nada como isto, e esta é minha sétima missão”, ressaltou Léveillée. O conflito começou em 2012, quando rebeldes muçulmanos séléka lançaram ataques contra o governo. Durante os dois anos seguintes a violência escalou segundo parâmetros sectários: as milícias cristãs antibalaka (antifacão) pegaram em armas contra os séléka. Embora os civis muçulmanos constituam o grosso das vítimas, os cristãos também são ameaçados.

“Há situações nas quais não podemos ter acesso às pessoas às quais precisamos chegar porque as forças em combate não permitem”, contou à IPS o porta-voz do Programa Mundial de Alimentos (PMA), Steve Taravella. “As estradas estão bloqueadas, os comboios são desviados, os suprimentos de alimentos são saqueados, e isso quando não há ataques contra a população”, acrescentou.

Nos últimos meses, devido ao aumento das forças internacionais e à saída em massa de muçulmanos, a ONU registrou uma parada das hostilidades na capital. Porém, a violência extrema e aleatória da República Centro-Africana cria grande emaranhado de problemas de segurança para os trabalhadores humanitários que tentam chegar aos 2,2 milhões de pessoas que precisam de ajuda.

“Em um momento, a única estrada que vai de Camarões a Bangui, que usamos como corredor para os alimentos, esteve fechada completamente, porque os motoristas que chegavam de Camarões, e que eram principalmente muçulmanos, não queriam cruzar a fronteira. Durante semanas tiveram medo”, afirmou à IPS Fabienne Pompey, encarregada de comunicações regionais do PMA radicada no país. “Agora a estrada está aberta para o transporte de alimentos a partir da fronteira, mas usamos uma escolta militar da Missão de Paz da União Africana na República Centro-Africana” (Misca), acrescentou.

Marie-Servane Desjonqueres, porta-voz do Comitê Internacional da Cruz Vermelha para a África central e austral, disse à IPS que “a insegurança e o banditismo estão crescendo, e isso, naturalmente, é um problema muito grande para as organizações humanitárias. É difícil dirigir nas estradas e é complicado ter veículos no próprio complexo, porque existe o risco de serem roubados”.

A criação de um contexto seguro para a entrega de ajuda humanitária na República Centro-Africana e uma presença maior de tropas internacionais foram elementos fundamentais da recomendação de seis pontos, apresentada no dia 20 de fevereiro pelo secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon. Mas o pessoal humanitário continua sendo alvo de ataques por parte de grupos armados, informou a ONU no dia 3 deste mês.

No momento, as forças militares internacionais na República Centro-Africana estão compostas por cerca de dois mil soldados franceses, sob a missão Sangaris, e aproximadamente seis mil da União Africana, no contexto da Misca. Após o pedido de Ban, a União Europeia comprometeu quase mil soldados para dar mais apoio, mas esta força ainda não se concretizou.

Para o Unicef e o PMA, o uso de escoltas armadas permite chegar a áreas do país com graves problemas de segurança. “Atuamos com escoltas da Sangaris ou da Misca, mas como último recurso”, detalhou Léveillée. “É muito importante que mantenhamos nossa neutralidade. Não necessariamente queremos que nos associem com guardas armados”, ressaltou.

No dia 3 de março, Ban propôs uma missão da ONU de 12 mil soldados. Se prevê que o Conselho de Segurança das Nações Unidas vote a resolução de aprovação esta semana, com vistas a um deslocamento em setembro, informou a atual presidente do Conselho, a embaixadora nigeriana Joy Ogwu.

Embora algumas organizações, como a Médicos Sem Fronteiras (MSF) e a Federação Internacional da Cruz Vermelha e da Meia-Lua Vermelha (IFRC) não apelem à custódia armada, negociar com as partes em conflito é uma ferramenta universal nesse tipo de operações humanitárias. “Não temos pessoal armado para tarefas de segurança, dependemos do respeito das partes em conflito”, pontuou à IPS o chefe da missão do MSF em Bangui, Sylvain Groulx.

A União Europeia envia aviões de carga com suprimentos humanitários à República Centro-Africana. Foto: EU/ECHO Jean-Pierre Mustin/cc by 2.0
A União Europeia envia aviões de carga com suprimentos humanitários à República Centro-Africana. Foto: EU/ECHO Jean-Pierre Mustin/cc by 2.0

 

“Nós não portamos armas e nunca usamos escoltas armadas”, disse à IPS o porta-voz da IFRC, Benoit Matsha-Carpentier. “Na verdade, este é um de nossos princípios”, destacou, acrescentando que “há debates de alto nível em curso, com o governo ou por parte dos voluntários, seja com que for que esteja no comando, para garantir que o pessoal humanitário chegue com segurança aos que passam necessidades”. A IFRC tem uma rede de sociedades específicas em cada país, que facilita o apoio em um âmbito local.

A sociedade nacional da IFRC na República Centro-Africana tem impacto importante em apoiar a Federação e outras organizações humanitárias que se veem limitadas para fazer chegar a ajuda à população centro-africana. “Se é muito perigoso permanecer no terreno, então distribuímos a ajuda mediante um sócio local”, explicou Desjonqueres. “Nosso principal sócio na República Centro-Africana é a Cruz Vermelha (local), que tem uma rede muito forte em todo o país e muitos voluntários”, afirmou.

Segundo Desjonqueres, “um de nossos mandatos é difundir o respeito internacional pelos direitos humanos. Durante muitos anos, realizamos sessões para falar sobre essas regras básicas de humanidade que é necessário serem respeitadas em tempos de guerra, e que incluem a passagem segura para os trabalhadores humanitários”.

Pompey enfatizou que “estamos distribuindo alimentos para quem sofre necessidades, este é nosso critério. É muito importante repetir isso cada vez, para que as partes envolvidas no conflito nos deixem ir”. Na crise da República Centro-Africana, com milhares de mortos e mais de 600 mil refugiados, a ajuda é um objetivo imediato, mas não uma solução de longo prazo. “A melhor opção será um acordo político” interno que ponha fim ao conflito “e ajude a concretizar a paz”, ressaltou. Envolverde/IPS