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O longo caminho para o reconhecimento de um terceiro gênero

Na Nova Zelândia, onde Sujinrat Prachathai tem residência, ela é uma mulher que pode colocar diante do nome “Sra.”, para indicar que está casada. Mas, na Tailândia, continua sendo legalmente homem, apesar de ter feito uma cirurgia de mudança de sexo há anos. Sarah mostra seu documento de identidade, que a reconhece como mulher. Foto: Sutthida Malikaew/IPS
Na Nova Zelândia, onde Sujinrat Prachathai tem residência, ela é uma mulher que pode colocar diante do nome “Sra.”, para indicar que está casada. Mas, na Tailândia, continua sendo legalmente homem, apesar de ter feito uma cirurgia de mudança de sexo há anos. Sarah mostra seu documento de identidade, que a reconhece como mulher. Foto: Sutthida Malikaew/IPS

 

Nações Unidas, 8/5/2014 – O mundo avança para o reconhecimento da existência de um terceiro gênero, além do masculino e feminino, mas o processo é lento e doloroso. “Os direitos das pessoas transgênero à sua própria identidade e a saúde, educação, trabalho e moradia, entre outros, são reconhecidos cada vez mais”, afirmou Charles Radcliffe, chefe da Seção de Assuntos Globais do Escritório do Alto Comissariado da Organização das Nações Unidas (ONU) para os Direitos Humanos, ao ser consultado pela IPS.

Na Ásia meridional existe uma longa tradição. Bangladesh, Nepal e Paquistão avançam para o reconhecimento do transgênero, ou terceiro gênero. Mas agora há mais regiões do mundo que se movem na mesma direção. Em 2012, a Argentina aprovou um alei sobre identidade de gênero que é considerada modelo na matéria. “Os países europeus, muitos dos quais exigiam que as pessoas transgênero se esterilizassem antes da concessão de um novo documento de identidade, agora revisam uma a uma suas políticas”, disse Radcliffe.

No mês passado, a Suprema Corte de Justiça da Índia reconheceu os direitos das pessoas transgênero. O porta-voz da ONU, Stephane Dujarric, comentou essa decisão, que permite reconhecer oficialmente um terceiro gênero e confirma que a discriminação por essa causa está proibida pela Constituição do país. “Isso deveria preparar o caminho para reformas que facilitem as pessoas transgênero da Índia a obter reconhecimento legal de sua identidade de gênero e a possibilidade de conseguir um trabalho e ter acesso a serviços públicos”, acrescentou.

Dados não oficiais indicam que a Índia teria cerca de dois milhões de transgêneros, em uma população de 1,3 bilhão de habitantes.

Grace Poore, coordenadora regional do programa para a Ásia e as ilhas do Pacífico da Comissão Internacional de Direitos Humanos de Gays e Lésbicas (IGLHRC), disse à IPS que a decisão da justiça indiana é “fenomenal”. “Os juízes não só desafiaram a opressão que implica obrigar as pessoas a se ajustarem a um sistema de gênero binário, e à discriminação que acarreta essa conformidade sob coação, como estabeleceram que não reconhecer a identidade de gênero viola a Constituição da Índia”, ressaltou Poore.

A coordenadora também disse que essa violação priva as pessoas transgênero de garantias básicas da Constituição, como o direito à vida, à liberdade e à dignidade, à privacidade, à livre expressão, à educação e a não sofrer violência, exploração nem discriminação. “Todos esses direitos, segundo os juízes, podem ser exercidos se em um princípio existe o reconhecimento das pessoas transgênero como um terceiro gênero”, acrescentou.

“Segundo Poore, o assombroso dessa decisão é que legaliza o reconhecimento das mulheres e dos homens trans sem exigir uma cirurgia de mudança de sexo. O que falta agora é a Suprema Corte despenalizar a homossexualidade e determinar que o artigo 377 do Código Penal da Índia é inconstitucional”, acrescentou.

A IGLHRC considera que a Argentina adotou em 2012 uma das leis mais avançadas ao eliminar todo requisito para solicitar a mudança de identidade de gênero, especialmente os diagnósticos médicos e as cirurgias de mudança de sexo. Há pouco, Dinamarca, Holanda e Suécia também adotaram ou atualizaram leis para permitir que as pessoas mudem sua identidade de gênero sem necessidade de recorrer a uma cirurgia. No Chile, os legisladores analisam uma lei avançada neste aspecto, segundo a IGLHRC.

Boris Dittrich, diretor de políticas do Programa de Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros da organização Human Rights Watch, considerou “histórica” a decisão da justiça indiana. Tradicionalmente, as pessoas do terceiro gênero tiveram um papel significativo na sociedade indiana, acrescentou. “A Suprema Corte lhes restituiu sua dignidade ao pôr fim a uma norma que foi introduzida pelo direito colonial britânico”, explicou à IPS.

O tribunal foi claro: a difícil situação das pessoas transgênero é reconhecida como um assunto de direitos humanos. O terceiro gênero é injustamente tratado segundo o Artigo 377 do Código Penal, outra herança colonial que deve ser revogada, acrescentou. Dittrich também mencionou a Argentina. “Sua lei é um exemplo para o resto do mundo”, afirmou.

José Luis-Díaz, diretor do escritório da Anistia Internacional na ONU, ressaltou à IPS que a decisão indiana pode melhorar a vida de milhões de transgêneros. “Mas, enquanto o Artigo 377 continuar em vigor, a discriminação e a violência diante da orientação sexual e da identidade de gênero das pessoas continuarão sendo uma ameaça”, advertiu. Esse artigo, que a própria Suprema Corte ratificou em dezembro, penaliza as relações consensuais entre adultos do mesmo sexo. É preciso revogar essa lei”, enfatizou.

Na semana passada, a ONU lançou na cidade indiana de Mumbai seu primeiro vídeo musical ao estilo de Bollywood, criado especialmente para sua campanha contra a homofobia, Livre e Igual. Também na semana passada, uma comédia musical sobre um artista de rock transgênero, Hedwig and the Angry Inch, foi indicada em oito categorias para o Prêmio Tony, um dos mais prestigiados do teatro da Brodway, em Nova York, Estados Unidos. Envolverde/IPS