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A vida persiste na Síria

Um mural de mosaicos em Damasco, “para dizer ao mundo que os sírios amam a vida”, afirma o artista Moaffak Makhoul. Foto: Eva Bartlett/IPS
Um mural de mosaicos em Damasco, “para dizer ao mundo que os sírios amam a vida”, afirma o artista Moaffak Makhoul. Foto: Eva Bartlett/IPS

 

Damasco, Síria, 13/5/2014 – Qualquer dia da semana, nada detém o vai e vem de pedestres, automóveis, motos e bicicletas na Cidade Velha de Damasco. Os mercados estão lotados de clientes que pechincham com os comerciantes os preços de especiarias, perfumes florais, roupas ou qualquer outro produto abundante no bazar de Hamidiyah. No final da histórica Via Reta, traçada na época do Império Romano, algumas crianças brincam de futebol entre as antigas colunas.

É o terceiro ano de um devastador conflito armado interno, apoiado desde o exterior para derrubar o governo de Bashar al Assad. Mais de cem mil pessoas morreram, a imensa maioria civis, e outros dois milhões se refugiaram em países vizinhos. Mas a Síria ainda palpita vida e esperança.

Nas estreitas ruas da Cidade Velha, os casais passeiam de mãos dadas e os homens idosos se cumprimentam sorrindo e com um beijo no rosto. A música chega pelas portas abertas das antigas casas, cujos jardins estalam de verde. Um leiteiro faz a entrega em grandes baldes carregados em sua bicicleta. Mas as espaçosas casas, convertidas em hotéis e restaurantes, não têm turistas. Alguns comerciantes se queixam do mesmo: suas lojas têm os produtos, mas não os habituais compradores estrangeiros.

Bassam dirige a loja familiar de joias e antiguidades Giovanni, perto da Porta Leste da Cidade Velha, em uma casa damascena de grandes arcos e ornamentos em madeira. “As vendas não vão muito bem devido à situação. Antes vinha muita gente”, afirmou, mostrando uma fotografia na qual aparece junto a uma mulher. “É Catherine Deneuve, a atriz francesas. Ela é muito famosa”, ressaltou. Personalidades conhecidas de todo o mundo costumavam frequentar sua loja, acrescentou.

Na Mesquita dos Omeyas, os fiéis rezam e se reconfortam com o ambiente fresco, enquanto um rapaz pratica os giros da dança sufi. Do lado de fora, as mulheres se sentam à sombra do jardim com seus filhos e desfrutam de um piquenique de sanduíches. A ampla praça que fica diante da mesquita está repleta de vendedores de alimentos e roupas, famílias passeando e crianças vendendo rosas.

Um jovem vendedor de pipoca assegurou que as coisas estão melhorando. “A vida aqui é boa, a situação voltou à normalidade, o governo nos apoia. Mas minha casa está na Babilônia, na periferia de Damasco, e não posso voltar porque foi tomada pelos rebeldes”, contou à IPS.

Quase diariamente, grupos armados lançam ataques de morteiro contra zonas civis a partir de aldeias próximas, como Jobar ou Mliha. No dia 15 de abril, o fogo de morteiros atingiu a escola primária de Manar. Morreu um menino e outras 62 crianças ficaram feridas. Naquela manhã também foi bombardeado um jardim de infância no mesmo populoso bairro de Damasco ferindo três crianças.

No dia 29 de abril, esses disparos alcançaram o instituto de estudos religiosos Bader Eddin al-Hassni. Morreram 14 estudantes e 86 ficaram feridos, segundo informação da agência árabe de notícias Sana. Uma tarde, enquanto se sentava fora dos muros da Cidade Velha, a cerca de cem metros da Porta Leste, esta repórter viu os clarões de disparos procedentes de Jobar, uma área controlada por grupos armados que querem derrubar Assad.

Al Midan, distrito conhecido por seus tradicionais doces, ainda recebe clientes locais, mas sofre a mesma falta de estrangeiros que o restante do turismo. “Sempre trazia delegações aqui para que provassem os doces”, contou Anas, jornalista da televisão síria. “Mas, como pode ver, já não há turistas”, acrescentou. Nagham, um estudante universitário, disse que tampouco muitos sírios veem agora a Al Midan. “As pessoas têm medo porque estamos muito perto de Yarmouk. Al Midan é seguro, mas as pessoas acreditam que os terroristas de Yarmouk dispararão morteiros para cá”, explicou.

Devido aos ataques contra a população civil com carros-bomba, por exemplo, há barreiras militares em toda a cidade e nas zonas rurais. Enquanto os soldados revistam os veículos em busca de explosivos, o trânsito vai se complicando. Mas, sem esses controles, a mortandade de civis seria maior, dizem as autoridades. Os moradores da ocidental cidade de Homs conhecem de sobra os efeitos dos carros-bomba. A cidade esteve por dois anos sob controle de grupos rebeldes, cada vez mais encurralados no centro histórico, que abandonaram no dia 7 deste mês, em razão de um acordo com o governo.

No dia 9 de abril, por exemplo, dois deles detonaram sucessivamente na mesma rua de um bairro residencial, matando 25 pessoas e ferindo outras 107, segundo meios de comunicação estatais. E, no dia 29 do mesmo mês, outros dois carros-bomba e um ataque com foguetes causaram 42 mortes. Entretanto, em Homs também começou um movimento de reconciliação, com combatentes abandonando as armas e optando por uma solução política para o conflito civil sírio.

Na cidade costeira de Latakia, 350 quilômetros a noroeste de Damasco e no Mediterrâneo, os refugiados internos da aldeia de Kasab, antigo assentamento armênio muito próximo à fronteira com a Turquia, se refugiam em um templo da Igreja Ortodoxa. No dia 21 de março combatentes chechenos e de outros países, filiados à rede Al Qaeda e apoiados por forças especiais turcas, começaram a lançar mísseis desde a fronteira contra a aldeia, que depois tomaram e onde cometeram atrocidades, segundo testemunhos. Há denúncias de 80 pessoas assassinadas. O restante dos quase dois mil habitantes fugiu para Latakia e outras partes.

“Podem destruir nossas casas, mas voltaremos. Acreditamos no exército árabe da Síria”, disse Suzy, moradora de Kasab. “Como não puderam encontrar as moças, violaram as idosas. Destruíram tudo, sequestraram nossas casas, quebraram a estátua da Virgem Maria”, lamentou. Indagada sobre sua opinião a respeito de Assad, responde sem duvidar, como muitos nesse país: “Temos um líder, o doutor Bashar al Assad. O amamos, não queremos mais nada. Queremos ele e queremos recuperar a Síria”.

Em outra região de Latakia, uma cidade protegida pelo exército, mas atacada à distância com mísseis, crianças e adolescentes brincam diante de um amplo e limpo parque, enquanto homens e mulheres se sentam, fumam seus narguilés e conversam. Fadia, uma muçulmana sunita que não usa véu, está sentada em um grupo de mulheres vestidas com e sem essa peça de roupa religiosa. Segundo ela, em Latakia não há problemas graves.

“A vida é boa e somos felizes. O exército nos protege. Amamos nosso presidente e nosso exército e nosso país. Mas há forças externas que querem destruí-lo. Aqui não há problemas entre cristãos, muçulmanos, armênios e aluitas. Somos uma só família e ninguém pode nos separar”, afirmou enfaticamente.

Também nesse lugar, Lilly Martin, uma californiana que mora há 22 anos na Síria, dirige até sua casa. “No começo (dos protestos contra Assad, em 2011) houve um foco de violência e os manifestantes atacavam a polícia. Mas, quase em seguida, o povo de Latakia lhes deu as costas. A população não aceita o levante. Temos cristãos, muçulmanos e minorias aqui. Há muito pouco apoio aos rebeldes, por isso é uma cidade pacífica”, ressaltou.

Em Homs, Latakia e Damasco muros e portas são decorados com grandes bandeiras sírias e imagens de Assad. As bandeiras são colocadas nas celebrações de Páscoa, nos casamentos e em outras festividades. E, junto com as bandeiras, há hinos patrióticos cantados pelos celebrantes e acompanhados por gritos e palmas.

Na Autostrad, a principal rua que leva à localidade de Al Mezze, em Damasco, um grande mural de mosaicos coloridos, pedaços de azulejos e outros objetos reciclados, cobre a parede externa de uma escola e ocupa toda uma quadra. É o projeto de seis artistas, conduzidos por Moaffak Makhoul, que explica o conceito. “Fizemos o mural para as crianças, para sorrirem. E queremos enviar ao mundo a mensagem de que os sírios amam a vida e insistem em viver e sobreviver”, enfatizou.

Sua mensagem contém também um elemento político relevante. “Dizemos não aos que expõem a ideologia que busca eliminar o outro, o takfirismo (uma corrente sunita extremista que considera como seus principais inimigos os que professam outros ramos do Islã)”, acrescentou.

Quatro adolescentes param para conversar. “Aqui vivíamos bem, com segurança. Tínhamos liberdade e agora não a temos”, disse Rehab, uma das moças. “Agora não se sabe quem pode ser um terrorista. Queremos que nosso país volte a ser como era”, acrescentou. Ramez, outra jovem, acredita em mudanças e que “a vida está melhorando”. Por seu lado, Batoul afirmou que “amamos Bashar. É uma boa pessoa. Sabemos o que fez pelo nosso país. Antes de tudo isso começar, vivíamos tranquilos e com segurança”.

Em sua solitária loja da Porta Leste, Bassam também é otimista. “A paz virá, cedo ou tarde; não, virá cedo. Damasco é uma cidade maravilhosa, e seu povo também”, afirmou. Desde a mesquita, o muezim chama a oração e soam os sinos das igrejas católicas em uma cidade, e em um país, onde a vida continua. Envolverde/IPS