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Faturamento fraudado causa perdas multimilionárias na África

Entre 2002 e 2011, as fugas de capital do Quênia duplicaram o valor que esse país recebeu como ajuda oficial ao desenvolvimento. Foto: Kristin Palitza/IPS
Entre 2002 e 2011, as fugas de capital do Quênia duplicaram o valor que esse país recebeu como ajuda oficial ao desenvolvimento. Foto: Kristin Palitza/IPS

 

Washington, Estados Unidos, 14/5/2014 – A falsificação do faturamento comercial custa anualmente milhares de milhões de dólares de renda fiscal a cinco países africanos e facilitou o fluxo financeiro ilegal de pelo menos US$ 60,8 bilhões entre 2002 e 2011. Os dados constam de um estudo de 52 páginas publicado no dia 12, pela organização Global Financial Integrity (GFI), com sede em Washington, que utiliza os números do comércio bilateral entre 2002 e 2011 que estão na base de dados de intercâmbio de produtos básicos da Organização das Nações Unidas (ONU).

O estudo estima que a média anual de perdas de impostos por subfaturamento comercial nesse período foi 12,7% da renda total do governo de Uganda, de 11% da referente a Gana, 10,4% da de Moçambique, 8,3% do Quênia e 7,4% da Tanzânia. O informe, patrocinado pelo Ministério de Assuntos Exteriores da Dinamarca, é o primeiro estudo exaustivo sobre a magnitude da perda de renda fiscal desses países.

Falsificar o faturamento implica modificar intencionalmente o valor, a quantidade ou a composição das mercadorias nas faturas e nos formulários de declaração aduaneira, em geral para não pagar impostos ou lavar dinheiro.

“As transações comerciais fraudulentas roubam dos povos desses países dinheiro que poderia ser usado para investir em infraestrutura, escolas, hospitais e outros serviços públicos muito necessários”, afirmou Mogens Jensen, ministro de Comércio e Cooperação para o Desenvolvimento da Dinamarca. Além disso, essa prática é uma fonte importante de fuga de capitais.

A Tanzânia lidera a lista de movimentos ilegais por ano, com US$ 1,87 bilhão. O Quênia vem em segundo com US$ 1,51 bilhão, seguido de Gana (US$ 1,14 bilhão), Uganda (US$ 884 milhões) e Moçambique (US$ 585 milhões). Essas perdas constituem “uma das condições mais danosas que prejudicam o crescimento econômico e o desenvolvimento, a governança e os direitos humanos na África e em todo o mundo”, de acordo com o informe.

A prática de subfaturar ou falsificar o faturamento prospera em um sistema comercial internacional caracterizado pelo segredo financeiro e pelos paraísos fiscais. Na década analisada, as fugas de fundos duplicavam o valor que o Quênia recebeu como ajuda oficial ao desenvolvimento (AOD). Em Gana, a cifra foi praticamente igual à sua AOD, enquanto na Tanzânia representou 77,6%, em Uganda 58,9% e em Moçambique 32,6%.

As cifras são enormes, mas os especialistas advertem que podem ser ainda maiores. “É provável que os cálculos proporcionados por nossa metodologia sejam muito conservadores, já que não incluem falsificação do faturamento do comércio de serviços ou inatingíveis, duplicação do faturamento comercial,  transações hawala (sistema local de transferência informal de fundos) e negócios em dinheiro”, apontou o presidente do GFI, Raymond Baker.

Gana, Quênia, Moçambique, Tanzânia e Uganda são países que vêm exibindo um importante crescimento econômico nos últimos anos. Mas a riqueza continua concentrada em mãos de uns poucos e não chega às pessoas comuns nem às populações mais pobres, que frequentemente carecem de serviços básicos. A renda fiscal que perdem os Estados junto com as fugas de capital sem declarar poderia ajudar a resolver essas carências.

“O problema está na falta de transparência e na má apresentação das cifras. A publicação dos dados é importante”, explicou à IPS um dos autores do informe, Brian LeBlanc. O pesquisador também se referiu às estatísticas apresentadas na semana passada, no último informe do African Progress Panel, um centro de pensamento presidido pelo ex-secretário-geral da ONU, Kofi Annan. Segundo esse documento, a pesca e o corte ilegais, que em grande parte beneficiam interesses estrangeiros, custam à África subsaariana cerca de US$ 20 bilhões por ano, em média.

Especialistas do GFI destacaram a importância dos governos no plano nacional e internacional para reprimir a falsificação do faturamento comercial. Os dois objetivos principais do informe se centram em ajudar as administrações a melhorarem a transparência das transações financeiras nacionais e internacionais e a cooperação entre os governos de países desenvolvidos e em desenvolvimento para fechar os canais pelos quais flui o dinheiro ilegal.

“Um país com leis fracas ou a aplicação pouco rígida das leis sobre lavagem de dinheiro pode incentivar a falsificação ao facilitar as transferências e o uso do dinheiro obtido em transações ilegais”, afirma o documento. Segundo LeBlanc, é necessária atenção especial para que os funcionários aduaneiros tenham “acesso em tempo real à informação de preços” para que possam identificar os produtos valorizados e comercializados de forma irregular. Também se deve pressionar as auditorias para que informem aos governos sobre falsificação de faturamento.

As autoridades aduaneiras frequentemente carecem dos meios e, em alguns casos, da vontade de reunir os dados necessários para entender a magnitude dos fluxos ilegais de capitais por faturamento fraudulento, ou a renda fiscal e o capital de investimento perdidos com a fuga de capital. Os governos devem rastrear o rumo dos fluxos comerciais, detectar se as faturas foram alteradas em diferentes jurisdições e saber comparar os valores dos bens incluídos nas faturas com os preços deles no mercado mundial.

“Muitos países não têm acesso aos preços internacionais dos diferentes produtos básicos. Essa assimetria de informação obstrui os esforços para reduzir o faturamento fraudulento e os fluxos financeiros ilegais”, disse Clark Gascoigne, diretor de comunicações do GFI, em entrevista à IPS. A assimetria informativa não só priva os governos de suas rendas fiscais, como também é obstáculo no combate a esses crimes.

“A falta de aplicação nacional dos regulamentos contra a falsificação de faturas comerciais e das normas internacionais pouco claras alimentam ainda mais os fluxos de dinheiro ilegal”, pontuou LeBlanc. Porém, os cinco países africanos estudados realizam progressos, por exemplo, com a adoção de sistemas aduaneiros eletrônicos e, em alguns casos, de unidades de inteligência financeira.

A Organização Mundial do Comércio também poderia servir como um importante mecanismo de aplicação de normas, segundo LeBlanc, que também citou um modelo aplicado pelas Filipinas que teve sucesso. “Um passo final para restringir o comércio e as transações financeiras ilegais é um mecanismo de denúncia de irregularidades, pelo qual empregados e competidores podem denunciar de forma anônima se seus empregadores ou rivais praticam faturamento fraudulento”, ressaltou à IPS.

É evidente que esse tipo de denúncia beneficia a competição de uma empresa, mas também favoreceria seus empregados, afirmou LeBlanc. “Existe a ideia errônea de que a fatura fraudulenta melhora o desempenho de uma empresa porque lhe dá mais dinheiro. Mas não é assim”, enfatizou. “Os benefícios extraordinários proporcionados pela fatura fraudulenta não são distribuídos entre os empregados; pelo contrário, terminam em contas bancárias que os proprietários das companhias têm no exterior”, destacou. Envolverde/IPS