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Paralisação agrária consegue suas primeiras vitórias

Agricultores da Dignidade Agropecuária protestam acorrentados na Praça de Bolívar. Foto: Helda Martínez/IPS
Agricultores da Dignidade Agropecuária protestam acorrentados na Praça de Bolívar. Foto: Helda Martínez/IPS

 

Bogotá, Colômbia, 19/5/2014 – Após 12 dias de mobilização nacional, a Cúpula Agrária, Étnica e Popular da Colômbia conseguiu suas primeiras reivindicações na negociação com o governo para acabar com a paralisação iniciada em 28 de abril. Por meio de decreto, o governo aceitou negociar com uma mesa única para as 12 organizações da Cúpula Agrária – que segundo o governo representa mais de 90% dos que aderiram à greve – reconhece seus porta-vozes e aceita como agenda sua lista única de pedidos.

Além disso, o Poder Executivo emitiu uma circular determinando a “garantia do livre direito de protesto e de livre expressão”, condicionados ao não bloqueio de vias. Em um comunicado recebido pela IPS da seccional da Cúpula Agrária em Magdalena Médio, centro da Colômbia, após o decreto, a direção da greve nacional instruiu para que “regressemos às nossas terras”. Isso não implica levantar a paralisação, diz o texto. O programa de mobilizações prossegue, vigiando para que sejam referendados e cumpridos os acordos.

Os camponeses também indicaram em outro anúncio, que essas mobilizações cuidarão de uma de suas exigências, “a solução política negociada para o conflito social e armado colombiano”, iniciado em 1946.

Enquanto isso, na sede do Ministério do Interior a negociação prossegue, acompanhada por um delegado do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e do próprio diretor do Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, o norte-americano Todd Howland. “Confio que o governo nacional e a polícia manterão uma atitude prudente e respeitosa diante dos protestos pacíficos”, declarou o diplomata.

A Organização das Nações Unidas (ONU) acompanhará uma comissão de verificação de direitos humanos entre as partes, que relatará sobre a situação nos lugares onde são denunciados abusos: departamentos de Norte de Santander, Cesar, Arauca, Cauca e Meta. As negociações avançam lentamente, com participação de funcionários de vários ministérios e entidades nacionais, da procuradoria e da defensoria do povo, entre outros.

Quando os 35 porta-vozes da Cúpula Agrária anunciam que precisam deliberar sozinhos, os funcionários e diplomatas desaparecem. Os experientes líderes estabelecem prioridades e repassam a forma e a argumentação para expô-las. Uma vez que estejam prontos, os funcionários retornam e a reunião prossegue.

Um momento das negociações conduzidas pelo ministro do Interior, Aurelio Iragorri (na cabeceira da mesa), com a Cúpula Agrária, Étnica e Popular. Foto: Ministério do Interior da Colômbia
Um momento das negociações conduzidas pelo ministro do Interior, Aurelio Iragorri (na cabeceira da mesa), com a Cúpula Agrária, Étnica e Popular. Foto: Ministério do Interior da Colômbia

 

A negociação é encabeçada pelo ministro do Interior, Aurelio Iragorri. A IPS soube que em certa ocasião houve um momento de descontrole. O ministro “estava cansado, há um dia e meio trabalhava sem dormir”, contou à IPS uma funcionária do governo que presenciou os fatos do dia 6. “Há forças dentro e fora do governo dispostas a arrebentar a mesa da Cúpula Agrária para demonstrar que com eles é impossível negociar”, disse o ministro aos presentes, segundo a mesma fonte.

A explicação de Iragorri para seu desfalecimento indica a forte pressão na qual se move a administração de Juan Manuel Santos, que governa desde 2010 e pretende ser reeleito nas eleições que acontecerão em poucos dias. Seguramente haverá um segundo turno em 15 de junho e, embora quase todas as pesquisas indiquem vitória de Santos, ele tem em seu calcanhar seu mais duro opositor, o direitista Óscar Iván Zuluaga, apoiado pelo ex-presidente Álvaro Uribe (2002-2010).

Após cinco prolongadas sessões de diálogo, no dia 8 estavam no salão pouco mais de 50 pessoas. Pela tarde, Iragorri anunciou que seriam tratados em uma única negociação os pedidos da Cúpula Agrária. Essa era a pré-condição para continuar dialogando, segundo essa coalizão camponesa que surgiu de uma mobilização semelhante, de caráter nacional, em 2013.

À noite, e antes de se conhecer o decreto publicado no dia 9, o ministro da Agricultura, Rubén Darío Lizarralde, anunciou que retomava, por sua parte, a negociação com o Movimento Dignidade Agropecuária, outro setor agrário em paralisação: pequenos e médios produtores de arroz, batata, leite, café, milho, cacau e algodão, entre outros. Assim, talvez Santos consiga conjurar o aprofundamento da paralisação agrária que reviveu no final de abril, após as mobilizações de camponeses e produtores quebrados que se levantaram escalonadamente entre fevereiro e setembro de 2013, e que levaram a uma paralisação nacional em agosto.

O ano passado foi o de maior número de lutas sociais desde 1975, segundo o jesuíta Centro de Pesquisa e Educação Popular. Os protestos se dissiparam em outubro, com mesas de negociação atomizadas. Alguns setores receberam subsídios ou outros alívios durante vários meses. Dessa vez, a proximidade das eleições impõe outros cuidados. Em 2013, após a primeira semana de greve nacional, Santos havia dito que “a tal paralisação agrária não existe”.

Ao mesmo tempo, o Ministério da Defesa introduzia o argumento de que a mobilização era promovida ou estava infiltrada pelas esquerdistas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), que pegaram em armas em 1964. No dia 25 de agosto, foi capturado um dos porta-vozes da greve, Huber Ballesteros, vice-presidente do sindicato agrário Fensuagro, sendo acusado de financiar as Farc, que negocia o fim da guerra com o governo colombiano em Havana. A repressão contra a mobilização em massa de 2013 deixou 19 mortos, cerca de 900 feridos e 700 detidos.

Em setembro, Santos propôs um Pacto Agrário Nacional, mas a maioria dos que se sentaram à mesa era de grandes produtores e latifundiários. Em resposta, os setores rurais mais pobres convocaram um encontro próprio, cujos detalhes foram concretizados em dezembro em Bogotá e que desembocaria na Cúpula Agrária. A frase presidencial e as imagens de policiais batendo em camponeses, que se tornaram virais nas redes sociais, custaram a Santos uma queda nas pesquisas, de 48% em junho para 21% em setembro, segundo o Instituto Gallup.

A Cúpula Agrária é um processo inédito de unidade desde as bases. “Não saímos com o Dignidade porque, embora saudemos sua luta, não é a nossa”, explicou no Twitter um de seus integrantes, @CatatumboResiste. “Eles ao menos têm terra e tratores. Nossa luta é de fundo”, acrescentou.

A Cúpula Agrária tampouco se identifica com nenhum outro partido embora tenha conseguido um senador nas eleições de março. Alberto Castilla, que se apresentou na lista do esquerdista Polo Democrático Alternativo. Castilla é um dos fundadores do Congresso dos Povos, uma das duas grandes vertentes da Cúpula Agrária que desde 2012 começou a se aproximar da Marcha Patriótica. Os dois movimentos de origem rural surgiram em 2010. Nos primeiros passos, os indígenas atuaram como observadores.

Durante o governo de Uribe os povos ancestrais protagonizaram praticamente apenas enormes mobilizações ou mingas (trabalho coletivo para o bem comum, em quechua). Mas, em meados de março deste ano, quando foi realizada em Bogotá a Cúpula Agrária, Étnica e Popular, que deu nome ao movimento atual, também se integrou a Organização Nacional Indígena da Colômbia, que representa 1,4 milhão de nativos.

Também aderiu um setor importante dos afrocolombianos, o Processo de Comunidades Negras. No total, 12 organizações de caráter nacional ou regional redescobriram a unidade, em um movimento que há décadas não se via na Colômbia. Nesse encontro de março, foi acordado não permitir que o governo dividisse a negociação por setores ou regiões, como em 2013. Daí a transcendência do decreto presidencial que agora reconhece a mesa única nacional como interlocutora.

Em 30 de março, a Cúpula Agrária entregou um pedido de condições comum de oito grandes pontos e 127 reclamações concretas à Presidência e estabeleceu prazo de um mês e meio para empreender a mobilização. Além dos pontos de confluência, decidiram que todos lutarão pelas reivindicações dos outros. É a agenda de negociação que agora o ministro Iragorri tem em mãos.

Diante das dúvidas pelo possível efeito eleitoral da data da paralisação, os camponeses disseram que a mobilização é por direitos e não contra o presidente. Em 11 de abril se reuniram com ele. Trata-se de reclamações de reformas constitucionais e legais, de acatamento de leis ignoradas, de mudanças em políticas econômicas e sociais e de garantias para o protesto social. Um ponto se refere ao fim da guerra civil que dura meio século, mas, no entanto, se exige das partes acatar o direito internacional humanitário.

O primeiro ponto busca harmonizar a conservação da natureza com seu aproveitamento como meio de vida das comunidades agrárias, que seriam as que definiriam um novo ordenamento territorial local. Se exige proscrever qualquer forma de estrangeirização da terra e o fim de todos os tratados de livre comércio, bem como uma reforma participativa das políticas mineiras e energéticas.

O ponto sobre cultivos que são matéria-prima de drogas ilegais – coca, papoula e maconha – é crucial para a Cúpula Agrária, que pede o fim da erradicação violenta, uma substituição gradual e concertada e a libertação dos acusados por essa atividade que não façam parte do narcotráfico.

Os porta-vozes da Cúpula Agrária reptem que a paralisação é “escalonada, pacífica e contundente” e, no dia 7, estimaram que cerca de 120 mil pessoas estavam mobilizadas às margens das rodovias em 20 das 33 subdivisões desse país de 46 milhões de habitantes. “O governo é bipolar”, afirmou Olga Lucía Quintero, jovem líder camponesa do Catatumbo.

Enquanto Santos diz que garante o direito de protesto, já circulam na internet fotos de manifestantes feridos. A polícia antimotins incendeia as barracas que os camponeses armaram nos locais de concentração, confisca seus alimentos e, talvez para evitar que os gravem enquanto cometem abusos, tiram seus celulares.

A dignidade da batata

Produzir uma carga de batata (dois volumes de 65 quilos) custa US$ 30 na Colômbia, mas é vendida a US$ 15. Assim se converteu em inviável a agricultura para setores estratégicos de pequenos e médios produtores. Para muitos, a culpa está nas condições impostas pelos tratados de livre comércio assinados com outros países.

“Permaneceremos aqui enquanto for necessário”, disse à IPS o representante do Movimento Dignidade Agropecuária, Carlos Arturo López. Ele se acorrentou na noite do dia 6 junto a delegados de outros setores produtivos que se denominaram Dignidade Cafeeira, Dignidade Arrozeira e Dignidade da Batata, entre várias outras, na central Plaza de Bolívar, em Bogotá.

“Estamos há muitos dias nas estradas e o ministro (da Agricultura, Rubén Darío Lizarralde) não reconhece nossa legitimidade como porta-vozes dos camponeses. Ele continua falando com a mesma burguesia que nos levou até onde estamos, o abandono total”, ressaltou López. “O governo comete um erro enorme ao tentar tirar a legitimidade de um movimento como o nosso, que liderou as três últimas paralisações no país. O tema agropecuário vem sendo adiado há 50 anos”, acrescentou.

Depois dessa entrevista, Lizarralde anunciou que retomaria a negociação. Envolverde/IPS

* Com colaboração de Helda Martínez (Bogotá).