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O sonho euro-asiático de Putin cambaleia

Multidões agitam bandeiras da Crimeia e da Rússia em Simferopol depois do referendo. Foto: Alexey Yakushechkin/IPS
Multidões agitam bandeiras da Crimeia e da Rússia em Simferopol depois do referendo. Foto: Alexey Yakushechkin/IPS

 

Astaná, Cazaquistão, 19/5/2014 (EurasiaNet) – No contexto da celebração do Dia da Vitória, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, aproveitou para montar um espetáculo de apoio aos seus esforços para reunir as antigas repúblicas soviéticas. No dia 9 de maio, é comemorada a vitória da hoje extinta União Soviética e dos aliados sobre a Alemanha nazista, que pôs fim à Segunda Guerra Mundial (1939-1945), e foi uma ocasião para que os russos se deleitassem agitando a bandeira pátria em Moscou.

Putin aproveitou o dia anterior para reunir no Kremlin os presidentes da Armênia, Bielorússia, Quirguistão e Tajiquistão. Depois do êxito do movimento Euromaidan, que derrubou o governo da Ucrânia aliado da Rússia, Putin se dedicou a reforçar o apoio de outros países que integraram a União Soviética para promover sua agenda política. Em especial, está priorizando a criação de um bloco econômico regional como precursor de uma união política mais ampla entre os Estados euro-asiáticos. O Euromaidan foi um levante popular que eclodiu em novembro na capital da Ucrânia, quando o regime decidiu não prosseguir as aproximações com a União Europeia (UE).

A assinatura do tratado constitutivo da União Europeia Euro-Asiática está prevista para o final deste mês nesta capital, com a intenção de que esteja em vigor em janeiro próximo. Será uma ampliação da atual União Aduaneira, uma zona de livre comércio integrada por Bielorússia, Cazaquistão e Rússia. Armênia e Quirguistão preveem se incorporar a esse bloco antes do final do ano.

Enquanto Putin dava ardentes boas-vindas em Moscou aos membros existentes e potenciais do bloco, aparentemente para manter conversações sobre segurança e sem relação com o projeto de integração econômica, a pergunta na ponta da língua dos observadores era se esses países assinarão, ou não, a criação da União Econômica Euro-Asiática em menos de três semanas.

Isso porque, no dia 29 de abril, aconteceu uma desastrosa reunião da União Aduaneira em Minsk, na qual as expectativas de fechar o tratado se diluíram porque Putin e suas contrapartes, Alexander Lukashenko, presidente da Bielorússia, e Nursultan Nazarbayev, do Cazaquistão, reconheceram que tinham discordâncias sobre a redação do documento. A chamativa ausência do presidente do Cazaquistão no encontro do dia 8 em Moscou, convocado pela Organização do Tratado de Segurança Coletiva, fez pensar em diferenças de opinião. O escritório de Nazarbayev não quis fazer comentários à EurasiaNet.

Mas alguns observadores interpretaram sua falta como uma afronta a Putin, um de seus mais próximos aliados. Enquanto outros governos da região confraternizavam no Kremlin, Nazarbayev mantinha uma conversação cara a cara em Astaná com um alto funcionário dos Estados Unidos, o arquirrival geopolítico da Rússia no conflito da Ucrânia. O subsecretário de Estado norte-americano, William Burns, aproveitou a reunião com Nazarbayev para garantir o compromisso “duradouro” de seu país com o Cazaquistão e a Ásia central, quando a crise ucraniana ajuda a “realçar o que está em jogo”, segundo um comunicado da chancelaria norte-americana.

Analistas regionais concordam que os últimos acontecimentos não indicam problemas insuperáveis para a criação da União Econômica Euro-Asiática. “É difícil prever algo nesses tempos, mas me parece que será assinado o tratado, embora seja uma versão reduzida e os assuntos mais difíceis serão resolvidos depois”, apontou Nargis Kassenova, diretora do Centro de Estudos da Ásia Central da Universidade Kimep, em entrevista à EurasiaNet. “Se não for assinado, será um duro golpe para a reputação de Putin, mas também para a de Nazarbayev. Ambos investiram muito capital pessoal na iniciativa”, pontuou.

Alex Nice, analista regional da Economist Intelligence Unit, com sede em Londres, também acredita que os planos de integração estão mais ou menos encaminhados. “É possível que demore a assinatura definitiva do documento, mas estou certo de que o tratado entrará em vigor em janeiro próximo”, disse entrevista à EurasiaNet. “As negociações estão muito avançadas. Naturalmente, algumas das disposições mais controversas ficarão sujeitas a períodos de transição mais prolongados”, acrescentou Nice.

As probabilidades de o acordo ser assinado a tempo são “muito grandes”, concordou a especialista em segurança regional Aida Abshaparova, da Universidade do Oeste da Inglaterra. Nazarbayev é um torcedor da integração, destacou, e a assinatura do tratado em Astaná terá um grande “simbolismo” para ele, que foi o primeiro a propor o conceito de união euro-asiática, muito antes de Putin o retomar, e por isso se considera o “pai da ideia”.

As especulações de descarrilamento surgiram nos noticiários no dia 7, sobre o primeiro-ministro do Quirguistão, Joomart Otarbayev, desejar adiar a integração de seu país por um ano, mas seu porta-voz, Gulnura Toraliyeva, desmentiu. Otorbayev afirmou que o Quirguistão concluirá o processo legislativo para se incorporar no final deste ano, segundo declarações de Toraliyev à EurasiaNet por telefone.

Espera-se que a Armênia se integre em breve, embora seu ingresso esteja trancado enquanto o país negocia cerca de 900 exceções à tarifa comum da União. Os analistas acreditam que incorporar economias fracas como Armênia e Quirguistão é um obstáculo às negociações. Cazaquistão e Bielorússia se preocupam com as consequências econômicas que podem ter os esforços russos para ampliar sua influência geopolítica.

Talvez a maior ameaça para o êxito da União Econômica Euro-Asiática sejam as ações da Rússia na Ucrânia, indicou Kassenova. “A crise na Ucrânia prejudica a política da Rússia no espaço pós-soviético”, explicou. “Agora o país é visto como valentão que não respeita a soberania de seus vizinhos. Além disso, o conflito afetou a economia russa, que já não tem a mesma capacidade para atuar como locomotiva da integração”, acrescentou.

“Por um lado, a crise poderia dar maior poder de negociação à Bielorússia, ao Cazaquistao e Quirguistão. E, por outro, o destino de todo o projeto está suspenso. Terá a Rússia a vontade e os recursos para apoiá-lo e patrociná-lo?”, questionou Kassenova. Envolverde/IPS

* Joana Lillis é jornalista independente especializada em Ásia central. Este artigo foi originalmente publicado na EurasiaNet.org.