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Temporárias da agricultura, grandes excluídas da bonança chilena

Duas trabalhadoras temporárias da região chilena de Coquimbo descansam um pouco em uma dura jornada de colheita de fruta. Foto: Tamara Albarran/Ministério da Agricultura
Duas trabalhadoras temporárias da região chilena de Coquimbo descansam um pouco em uma dura jornada de colheita de fruta. Foto: Tamara Albarran/Ministério da Agricultura

 

Santiago, Chile, 23/5/2014 – Milhares de mulheres rurais do Chile que trabalham como temporárias na agricultura para a exportação são foco de pobreza e desigualdade e da falta de proteção trabalhista, apesar de seu trabalho gerar ganhos multimilionários à indústria local. Em 2013, as exportações agropecuárias do Chile totalizaram US$ 11,58 bilhões, mas a remuneração mensal da maioria das temporárias do setor não passou de US$ 380, equivalente ao salário mínimo desse país de 17,6 milhões de habitantes.

O Chile está catalogado por consultorias internacionais como um dos 25 países com maior crescimento no mundo e o segundo que mais cresceu na Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), da qual é integrante desde 2010 como o único país latino-americano além do México. Também é o país com maiores graus de trabalho formal na América Latina e no Caribe, segundo a Organização Internacional do Trabalho.

Entretanto, aqui ainda persistem trabalhos por dia ou por temporada, precários e carentes de direitos sociais básicos. “No Chile há uma grande quantidade de trabalhadores, e em particular de trabalhadoras, que se vinculam a espaços do mundo do trabalho que são precários por terem maus salários, carecerem de estabilidade trabalhista ou não terem condições legais nas quais amparar seu trabalho, porque são terceirizados, subcontratados, etc.”, disse à IPS a ministra do Serviço Nacional da Mulher (Sernam), Claudia Pascual.

Se a essa precariedade for acrescentado o fato de ser mulher, morar em bairros precários urbanos ou nas áreas rurais, a realidade se torna ainda pior, afirmou Pascual. “Não é o mesmo ser mulher pobre, ser mulher mapuche, ayumara, quechua; ser mulher rural, ser profissional ou não”, acrescentou. O trabalho das e dos temporários chilenos se tornou um fenômeno de massa na década de 1980, devido ao auge das plantações de frutas para exportação.

“Então abriram-se as portas para o trabalho de mulheres assalariadas, que em princípio foram mulheres pobres, camponesas”, explicou Alicia Muñoz, diretora da Associação Nacional de Mulheres Rurais e Indígenas (Anamuri). “Logo começaram a emigrar as mulheres das cidades para o campo, que se transformaram em uma mão de obra qualificada e em líderes do trabalho assalariado do campo”, afirmou à IPS.

Atualmente, entre 400 mil e 500 mil chilenas e chilenos trabalham na colheita de frutas em cada temporada, que se estende de setembro a março. Metade são mulheres e 70% delas trabalham sem contrato, segundo um estudo do Sernam. Os produtos agropecuários são o segundo item de exportação do Chile, atrás do cobre.

Nesse país, os trabalhos temporários são proporcionados principalmente por empresas terceirizadas nos setores da mineração, construção e pesca, onde também existem contratos por dia. Mas estudos e especialistas coincidem quanto a serem as mulheres temporárias da fruta as mais vulneráveis, pela informalidade do trabalho e ausência total de benefícios sociais.

Camponesas inclinadas sobre a terra se confundem com a paisagem em uma fazenda de horticultura na localidade chilena de Melpilla. Foto: Eric León/Ministério da Agricultura
Camponesas inclinadas sobre a terra se confundem com a paisagem em uma fazenda de horticultura na localidade chilena de Melpilla. Foto: Eric León/Ministério da Agricultura

 

A diretora da Anamuri afirma que o número de trabalhadores temporários para as safras é superior à oficial e que passaria de 700 mil pessoas, com alta presença feminina, especialmente na área de frutas. “O trabalho das mulheres hoje em dia é a fruta. Já não encontramos as mulheres das hortaliças”, afirmou. Os salários dos diaristas para as colheitas praticamente não aumentaram em duas décadas, pois os reajustes são absorvidos pelos intermediários. “Os salários estão parados há muitos anos, enquanto o custo de vida cresce muito rápido”, ressaltou.

Então, para reunir o dinheiro suficiente para sobreviver nos meses sem trabalho, até a colheita seguinte, as mulheres devem se “desdobrar, fazendo dois turnos (cerca de 16 horas diárias), para ganhar US$ 800 ou US$ 1 mil”, disse a dirigente camponesa. Como consequência, “temos trabalhadoras descartadas, que devido ao cansaço e aos pesticidas, aos 40 ou 50 anos estão doentes e sem poderem trabalhar”, pontuou Muñoz.

Um estudo da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), a condição de temporária oscila entre a regularidade, de formas e ciclos, e a irregularidade, pela instabilidade na duração da relação trabalhista. Também varia entre a inclusão e a exclusão trabalhista. No Chile, o emprego temporário não é uma escolha, acontece que se trata da única opção, acrescenta a FAO, que tem sua sede regional em Santiago.

“Acabam pobres e desgastadas pelas doenças. A maioria das assalariadas são chefes de família, por isso devem encontrar outro trabalho para os meses em que estão longe das colheitas”, explicou Muñoz.

O representante regional da FAO para a América Latina, Raúl Benítez, afirmou à IPS que quando se analisa os padrões da insegurança alimentar “percebe-se que as mulheres sofrem de maneira diferenciada esse problema, mais acentuada”. Por essa razão, “trabalhamos ativamente com as diferentes agrupações de mulheres e da sociedade civil nesses temas”, acrescentou.

Durante a campanha eleitoral que a recolocou na Presidência, em março, Michelle Bachelet prometeu que impulsionaria a melhoria de um controvertido projeto de estatuto do trabalhador temporário que, segundo as entidades, busca institucionalizar a precariedade trabalhista no setor. O projeto surgiu durante o primeiro mandato de Bachelet (2006-2010) e foi modificado por seu sucessor, Sebastián Piñera (2010-2014).

O projeto estabelece, entre outros aspectos, a opção de chegar a um acordo entre empregador e empregado, sem a necessidade de ter um sindicato, e não garante por contrato os direitos sociais dos trabalhadores.

“Rejeitamos esse estatuto durante o primeiro governo de Bachelet, porque não ia na direção que desejávamos. Nos últimos quatro anos a coisa ficou pior, porque mudou de origem e passou a ser mais uma necessidade empresarial do que de trabalhadores e trabalhadoras”, recordou Muñoz. “Felizmente, fomos ouvidas por parlamentares e políticos, o estatuto foi ficando pelo caminho”, acrescentou.

Agora as organizações se preparam para participar de uma nova mesa de negociação convocada pelo governo para resolver o problema dos que trabalham por temporada. “Efetivamente, nos chamaram e vamos nos sentar à mesa para discutir o tema de forma integral, para que se deixe para trás os interesses empresariais e se ponha finalmente sobre a mesa as necessidades das trabalhadoras e dos trabalhadores do Chile”, afirmou a diretora da Anamuri.

Essas mulheres, trabalhadoras, mães e, em muitos casos, único sustento de uma família, podem trabalhar por dois ou três meses durante a temporada de verão, um trabalho que no caso dos homens é exercido quase exclusivamente por estudantes, e por períodos mais longos, de quatro a oito meses.

Também existe a chamada “temporária falsa”, que trabalha dez ou 11 meses para um mesmo empregador, mas com um ou sucessivos contratos por obra ou tarefa, o que a deixa fora de qualquer indenização quando cessa seu trabalho. Envolverde/IPS