Caracas, Venezuela, 2 de junho de 2014 (Terramérica).- Os habitantes da Venezuela sofrem racionamento do serviço de água potável, e em algumas áreas uma péssima qualidade do líquido, apesar de esse território ser banhado por 520 rios de grande extensão. Um deles, que Júlio Verne chamou de “soberbo Orenoco”, é o terceiro mais caudaloso do mundo, depois do Amazonas e do Congo, com centenas de afluentes em uma bacia de quase um milhão de quilômetros quadrados que desemboca no Atlântico.
“Desde 2011 as torneiras estão quase sempre secas. Aqui as famílias pagam cada uma mil bolívares (US$ 20, um quarto do salário mínimo) por mês para os caminhões-tanque que trazem água”, disse ao Terramérica a comerciante informal Dulce Hernández, de Carayaca, povoado do litoral caribenho a noroeste de Caracas.
O mecânico Luis Mejía, morador em Maca, bairro pobre do leste da capital, também se queixa, porque “sobrevivemos com caminhões de água que as prefeituras nos mandam e estamos sob a dupla ameaça de sofrermos sede e, se chover de repente, transbordar o rio Gauire”, que cruza Caracas e em cuja margem cresceu o bairro.
A capital e outras cidades vão se povoando de histórias: escolas que mandam as crianças para casa mais cedo por falta de água para os serviços sanitários, pousadas e restaurantes que deixam de preparar bebidas ou simplesmente fecham, pequenas hortas que secam, fechamento de vias por manifestantes que protestam ao fim de muitos dias sem água.
Não é um problema apenas dos setores populares: no bairro de classe média de Chacao, a advogada Nuria García, após quatro dias tomando banho com um pequeno balde, montou “uma emboscada” ao serviço e voltou para casa mais cedo. “Havia água no chuveiro. Foi como uma festa, me dei um presente”, afirmou. Na exclusiva área de Altamira, este jornalista vai a uma entrevista na embaixada de um país europeu. É oferecida uma xícara de café. Um minuto depois a oferta foi cancelada: não há água nem mesmo para funcionar a cafeteira.
Desde 2008 a Venezuela se ufana de ter alcançado uma das Metas do Milênio em acesso à água potável, com cobertura de 96% de seus 30 milhões de habitantes. Mas em 2003, 2009 e agora em 2014, com o vai e vem dos fenômenos oceânicos e climáticos El Niño e La Niña, que se originam no Pacífico Sul e afetam o regime de chuvas, grandes setores da população urbana e rural constatam que os encanamentos não trazem água, ou o fazem muito espaçadamente, ou é da cor de barro, ou verde por causa de matéria orgânica.
No centro-norte, onde estão o Lago Valencia (de 344 quilômetros quadrados) e a cidade industrial de mesmo nome, os moradores que fecham ruas protestando contra a falta de água concordam com os que o fazem pela má qualidade do líquido. “Estamos agradecidos pelo governo nos ter entregue essas casas, mas vivemos com um inimigo que é a água verde dos tanques. A fervemos para cozinhar, mas não é segura, e banhamos as crianças com medo”, contou ao Terramérica Hilda Rosales, moradora de uma “petrocasa” (com paredes de aglomerados plásticos) em Guacara, ao lado de Valencia.
Nessa região, “coincide a escassez com a péssima qualidade. Diante de uma e outra, os órgãos oficiais apostam nas chuvas que enchem tanques e lavam dejetos minerais e orgânicos que obstruem os sistemas”, apontou ao Terramérica o engenheiro sanitarista Manuel Pérez Rodríguez, do Movimento pela Qualidade da Água, que atua na região.
O nível do Lago Valencia cresceu cinco metros nos últimos anos, invadiu dez mil hectares de terrenos e afetou bairros da cidade de Maracay, às suas margens. Diante do perigo de maiores inundações, o Ministério do Meio Ambiente e as empresas de água estatais decidiram transpor parte de suas águas para a represa regional Pao-Cachinche.
Essa represa atende cerca de três milhões de moradores de Valencia e de outros centros povoados. Mas, segundo Rodríguez, “as substâncias orgânicas abundantes no Lago, receptor de esgotos, chegam à represa, cujas obsoletas unidades de tratamento não são adequadas para tornar potável essas águas, e também os dutos ficam obstruídos”.
A Pao-Cachinche está na rota de coletores de esgoto de uma área com intensa atividade residencial urbana, industrial e agrícola. “Os filtros das unidades de tratamento se retrolavam com essas águas carregadas de resíduos, ficam obstruídos mais rapidamente e então a má qualidade se sobrepõe à escassez”, alertou Rodríguez.
“Na Venezuela não se constrói unidades de tratamento há 15 anos. Faltam substituição e manutenção. As existentes não estão preparadas para trabalhar com o aumento em quantidade e diversidade de contaminantes: entram em colapso, gerando escassez”, disse ao Terramérica a especialista María Eugenia Gil, da não governamental Fundação Aguaclara.
O governo tem planos para desenvolver 19 novos sistemas de captação de águas para tratá-la, construir 180 aquedutos rurais, reabilitar mais de 500 redes de fornecimento e perfurar novos poços para que a cobertura atinja em quatro anos 98% da população, disse o ministro do Meio Ambiente, Miguel Rodríguez.
A Venezuela está entre os 20 países do mundo com maior disponibilidade de água na natureza: 41.886 metros cúbicos por habitante ao ano, semelhante aos vizinhos Colômbia e Brasil, segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Mas a distribuição pelo território é outra história: 90% da população é urbana e 80% vive no norte e no ocidente, onde se encontra apenas 5% da água doce.
A maioria dos rios, sobretudo os mais caudalosos e extensos, se concentram no sul. E o grosso da população, que se aglomera no norte, dispõem de água potável ao final de caros processos para levá-la até ali.
Na década de 1960, começou a ser desenvolvido um polo industrial no sudeste banhado pelos rios Orenoco e Caroní, mas os planos não seguiram adiante. Mudar para o sul da capital foi uma ideia sem destino. Já nesse século, o presidente Hugo Chávez (1999-2013), propôs desenvolver um eixo Orenoco-Apure (seu maior afluente), o que nunca saiu do papel.
O problema não é novo. Em 1958, o então jornalista Gabriel García Márquez (1927-2014) escreveu uma reportagem intitulada aracas Sem Água, que levou ao seu livro Quando Era Feliz e Sem Documento, que poderia ser copiado quase seis décadas depois para retratar o presente dessa capital. O fictício protagonista dessa reportagem do prêmio Nobel de Literatura era um alemão. Se “Gabo” pudesse refazer esse trabalho em 2011, poderia inspirar-se em qualquer morador de Caracas. Envolverde/Terramérica
* O autor é correspondente da IPS.
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Artigo produzido para o Terramérica, projeto de comunicação apoiado pelo Banco Mundial Latin America and Caribbean, realizado pela Inter Press Service (IPS) e distribuído pela Agência Envolverde.