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Ser violada no México pode levar à prisão

Yakiri Rubí Rubio Aupart, a jovem mexicana presa durante três meses e que corre o risco de voltar à prisão por ter matado seu agressor quando se defendia de uma violação. Foto: Daniela Pastrana/IPS
Yakiri Rubí Rubio Aupart, a jovem mexicana presa durante três meses e que corre o risco de voltar à prisão por ter matado seu agressor quando se defendia de uma violação. Foto: Daniela Pastrana/IPS

 

Cidade do México, México, 26/6/2014 – “Só quero que tudo isto acabe”, repete à IPS entre frequentes suspiros a jovem mexicana Yakiri Rubí Rubio Aupart, que desde dezembro de 2013 enfrenta um julgamento por assassinato de seu violador. Yakiri, de 21 anos, vive no populoso bairro de Tepito, uma das zonas mais perigosas da capital do México.

Na tarde de 9 de dezembro, ela ia se encontrar com sua noiva quando foi interceptada por dois homens na rua, que a raptaram sob ameaça de uma navalha, a colocaram em uma motocicleta e a levaram a um hotel, segundo a versão que a jovem apresentou durante o processo.

Em seu depoimento contou que os dois homens a golpearam. Um deles, Miguel Ángel Anaya, de 37 anos e 90 quilos, a violou, enquanto seu irmão, Luis Omar Anaya, saía para fumar. A jovem se defendeu e feriu seu agressor no ventre e no pescoço com sua própria navalha. O homem começou a sangrar, mas conseguiu sair do hotel e fugir na moto.

Ela também saiu correndo do hotel e pediu ajuda a alguns policiais. Sangrando e semi nua, chegou a um escritório do Ministério Público, a três quarteirões do lugar. Enquanto esperava para ser atendida por seus vários ferimentos, um deles de 14 centímetros em um braço, seu segundo agressor a acusou de assassinar seu irmão por uma briga de amantes, algo que sua condição de lésbica desmonta, segundo sua defesa.

Yakiri foi levada para uma prisão de mulheres já condenadas, acusada de homicídio qualificado, crime punido com prisão de 20 a 60 anos. Três meses depois, um juiz reclassificou o crime para “legítima defesa com excesso de violência”, estabeleceu uma fiança, que a família teve dificuldades para reunir, equivalente a US$ 10 mil, e permitiu que acompanhasse o processo em liberdade com a obrigação de se apresentar semanalmente ao tribunal.

Agora, vive fechada em sua casa, devido às constantes ameaças que ela e sua família recebem. Só sai acompanhada dos pais. “Passou de uma prisão para outra”, disse Marina Beltrán, sua mãe de criação desde que tinha seis meses.

Luis Omar Anaya negou ter participado do rapto e, segundo sua versão, estava em sua casa, próximo ao hotel, quando seu irmão chegou moribundo. Além disso, no dia 23 deste mês, pediu a um juiz federal que revogue a liberdade condicional, em um amparo pelo qual é preciso decidir no prazo de 90 dias. A IPS tentou, sem êxito, conversar com o advogado de Anaya. Todo o processo deixou evidente uma rede de proteção judicial dos irmãos Anaya, que inclui a fabricação posterior de provas contra a jovem.

Para os grupos de defesa dos direitos das mulheres no México, Yakiri se converteu em um emblema contra o machismo que impera nas instituições responsáveis pela justiça, onde o princípio é ignorar o que dizem as mulheres violadas. “Milhares de mulheres foram assassinadas após serem violadas e os responsáveis continuam livres. Mas uma mulher violada que se defenda da morte acaba em uma prisão e um de seus violadores fica livre”, escreveu a jornalista e ativista Lydia Cacho.

Pelo menos, o caso mostra todas as deficiências do sistema de justiça frente a uma violação. A cada ano ocorrem 15 mil violações no México, mas apenas duas mil chegam a julgamento e pouco menos de 500 acabam em condenação, segundo o Informe da Violência Feminicida no México 1985-2010, realizado pelo parlamento e pelo governo junto com a ONU Mulheres.

A situação real é pior, porque somente entre 12% e 15% das meninas ou mulheres violadas fazem denúncias, segundo o informe apresentado pela Anistia Internacional em julho de 2012 ao Comitê das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação Contra a Mulher. “A Anistia Internacional não tem conhecimento da existência de provas que demonstrem que o número de violações esteja diminuindo ou que os julgamentos e condenações estejam aumentando”, afirma a organização.

No caso de Yakiri, os funcionários do Ministério Público demoraram nove dias para abrir uma investigação sobre a violação e passar o caso a uma promotoria especializada em gênero. Tampouco a jovem foi examinada por uma ginecologista, não recebeu atenção psicológica nem pílulas para evitar uma gravidez, como manda a legislação do Distrito Federal, onde fica a Cidade do México.

A Norma Oficial Mexicana 046, vigente desde 2005, estipula que em caso de violação “as instituições prestadoras de serviços de atendimento médico deverão oferecer imediatamente, e até um máximo de 120 horas depois de ocorrido o evento, o anticoncepcional de emergência” e estão obrigadas a “prestar serviços de aborto médico”.

Outro elemento machista, explica à IPS a advogada defensora Ana Katiria Suárez Castro, que atende gratuitamente o caso de Yakiri, é que a classificação de “excesso de violência” na legítima defesa é usada majoritariamente contra mulheres violadas.

O principal antecedente deste caso ocorreu em fevereiro de 1996, no Estado do México, quando ao sair de uma festa uma jovem atirou e matou o noivo de uma amiga que pretendia violentá-la. Um juiz considerou que, como o sangue dele estava saturado de álcool e o da moça não, o agressor não estava consciente de suas ações, enquanto a jovem poderia ter evitado as suas.

“O excesso de violência na legítima defesa é um absurdo. Como alguém pode se defender um pouquinho?”, reclama a mãe de Yakiri. A nuance é determinante. Se o juiz não tivesse estabelecido o excesso de violência ao reclassificar o fato, a jovem teria sido inocentada; por outro lado, se o juiz determina que é culpada de um excesso de violência, ela deverá pagar à família de seu agressor mais de US$ 28 mil para “reparar o dano”.

Por outro lado, a denúncia de violação está bloqueada porque, para a promotoria do Distrito Federal, o agressor já pagou. Os promotores não consideram a reparação do dano nem a participação do segundo agressor.

Seis meses depois da violação, Yakiri e sua família mantém duas batalhas: uma legal, para ser inocentada do assassinato e para que haja uma reparação do dano, e outra pessoal, para viver sem medo e recuperarem suas vidas. Durante este tempo, seus pais abandonaram seus empregos e seus irmãos deixaram a escola. A família recebe acompanhamento psicológico e a jovem teve que se acostumar a lidar com jornalistas.

“No começo foi horrível, começava a chorar, porque cada vez que tenho de contar o que aconteceu é como voltar a vivê-lo. Já não choro. Só quero que isto acabe”, assegurou. Yakiri também desejaria voltar a estudar. “Sempre gostei mais de trabalhar. Mas agora gostaria de aprender sobre leis para ajudar outras mulheres que passam o mesmo que eu e não têm uma advogada como a minha”, disse esboçando, por fim, um débil sorriso.

O país do feminicídio

No México, com 118 milhões de habitantes, a cada dia acontecem 6,4 assassinatos de mulheres. Destes, metade é de feminicídios, motivados por sexismo ou misoginia. O termo surgiu em razão dos assassinatos de mulheres em Ciudad Juárez, no Estado de Chihuahua, em 1993, onde o número de assassinatos de mulheres é 15 vezes maior do que a média mundial. Porém, o problema se expandiu. Só entre 2006 e 2012 os feminicídios no México aumentaram 40%, indica o informe De Sobreviventes a Defensoras: Mulheres que Enfrentam a Violência no México, em Honduras e na Guatemala. Envolverde/IPS