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Estados Unidos violam direito internacional com resposta à onda migratória

Menina segura cartaz em uma manifestação pela reforma migratória. Foto: Progresso Ohio/cc by 2.0
Menina segura cartaz em uma manifestação pela reforma migratória. Foto: Progresso Ohio/cc by 2.0

 

Washington, Estados Unidos, 1/7/2014 – Organizações de direitos humanos estão preocupadas pela forma como o governo dos Estados Unidos lida com a inédita onda de imigrantes, formada por dezenas de milhares de meninos e meninas sem documentos legais procedentes da América Central. O presidente Barack Obama anunciou que bases militares serão convertidas em centros de detenção para abrigar os cerca de 50 mil menores sem acompanhantes que chegaram à fronteira sul dos Estados Unidos nos últimos meses.

Dados recentes indicam que até 300 menores de idade são detidos diariamente, e as razões de sua chegada estão em discussão. Entretanto, acumulam-se vozes contrárias ao plano do governo e algumas sugerem que os centros de detenção violariam as obrigações que os Estados Unidos assinaram em matéria de direitos humanos.

“Nos preocupa muito saber que o governo de Obama prevê abrir mais centros de detenção de famílias, começando com um grande no Novo México”, declarou Clara Long, da organização Human Rights Watch. “Há evidências de que a detenção de crianças causa um grave dano, que pode ser duradouro, e que inclui depressão, ansiedade e dano cognitivo. É por isso que a detenção de menores por sua situação migratória é proibida pelo direito internacional”, afirmou à IPS.

No dia 27 de junho, o Centro de Detenção de Artesia, no Novo México, começou a receber famílias, em sua maioria mulheres com filhos, com a intenção de deportá-los no prazo de duas semanas. Em 2009, os Estados Unidos detiveram menos de 20 mil menores de idade que entraram ilegalmente no país. Porém, entre outubro de 2013 e maio deste ano, foram registradas mais de 47 mil detenções, aumento superior a 50%.

Após o notável aumento da entrada de crianças refugiadas, a Organização das Nações Unidas (ONU) entrevistou mais de 400 meninos e meninas sobre as experiências que tiveram em seus países de origem, e concluiu que quase 60% cumpriam os requisitos para receber proteção internacional, no que considerou um cálculo conservador.

“Ouvimos relatos de crianças que viram seus companheiros de aula torturados, desmembrados, ameaças contra as meninas”, disse no dia 26 de junho Leslie Vélez, do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur). “Isso nada tem a ver com as gangues, mas com grupos armados criminosos, tráfico de drogas, cartéis, organizações criminosas internacionais. Todas operam com uma impunidade cada vez maior”, ressaltouVélez.

Quando uma criança é detida na fronteira, normalmente fica retida em uma delegacia da patrulha de fronteira e, no prazo de 72 horas, é levada para um escritório federal de reassentamento. Em seguida, em 90% dos casos, é deixada nas mãos de um tutor nos Estados Unidos, em geral um familiar, que depois deve comparecer perante um tribunal.

Entretanto, com a crescente onda desde 2013, muitos meninos e meninas permanecem nos escritórios de controle de fronteira além do limite de 72 horas, segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Organizações não governamentais apresentaram uma queixa contra o Departamento de Segurança Nacional dos Estados Unidos que inclui mais de cem denúncias de abuso físico, verbal e sexual por parte dos agentes contra as crianças.

“Temos que tirar essa gente da fronteira e dar um trâmite à sua situação, por isso não necessariamente nos opomos a um centro de detenção de curto prazo”, apontou à IPS Michelle Brane, da Comissão de Mulheres Refugiadas. “Mas, se fala muito de ‘parar a corrente’, de usar a detenção como forma de dissuasão, e estamos contra isso. Impedir que as pessoas tenham acesso ao asilo é ignorar o direito internacional dos refugiados”, acrescentou.

Líbano, Egito e Jordânia receberam milhões de refugiados sírios em territórios muito menores do que o dos Estados Unidos, que costumam pedir aos demais países que cumpram as leis normas internacionais de proteção, pontuou Brane, ressaltando que “aqui os números são pequenos, comparativamente”.

Em 2006, Brane visitou um centro de detenção onde encontrou crianças estressadas, que perdiam peso e não podiam sair para a rua. “Quando perguntamos a elas e às suas mães como estavam, começavam a chorar. Não existe uma maneira humana de prender bebês”, destacou. Brane assegurou que existem alternativas comunitárias mais baratas e eficientes do que os centros de detenção, e os imigrantes ilegais comparecem aos tribunais em 96% das vezes.

Outras vozes afirmam que as condições atuais não são tão más. “Todos os que passam por ali definitivamente sentem que não é um lugar ideal para as crianças. Mas, se atendem as necessidades básicas das crianças? Então está bem”, afirmou Juanita Molina, diretora-executiva da organização independente Rede de Ação Fronteiriça, sobre sua recente visita a um centro de detenção no Arizona.

Muitos funcionários fazem o melhor que podem em relação às crianças, e em alguns centros há brinquedos, mas a falta de instalações e de pessoal pode vencer inclusive os empregados com as melhores intenções, afirmou Molina à IPS. “O governo federal deve reanalisar a forma com vê essa situação, não como uma crise de detenção, mas como uma crise humanitária e de refugiados”, acrescentou.

Molina e Brane questionaram a velocidade oficial para tramitar os casos. No dia 27 de junho, o governo de Obama anunciou que vai processar os casos no centro de detenção de Artesia no prazo de dez a 15 dias. “A falta do devido processo parece uma irresponsabilidade. É possível que seja legal, mas não moral”, destacou Molina.

Especialistas em migração argumentam que a causa subjacente do problema é a violência na América Central e não as políticas permissivas de imigração nos Estados Unidos, como afirmam legisladores conservadores desse país. “Essa imigração infantil não é consequência do fracasso da segurança fronteiriça”, opinou à IPS a analista Michelle Mittelstadt, do Migration Policy Institute, um centro de pesquisas de Washington.

“É o resultado de fatores de pressão profunda na América Central, da violência, da instabilidade e da falta de oportunidades econômicas, junto com as consequências, às vezes involuntárias, de leis, políticas e sentenças judiciais, e das redes de contrabando humano cada vez mais sofisticadas que dizem aos centro-americanos que seus filhos podem entrar nos Estados Unidos”, explicou Mittelstadt.

O vice-presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, anunciou na Guatemala, no dia 20 de junho, que Washington destinará US$ 254 milhões em ajuda para deter a violência na América Central. “A resposta da administração Obama, até agora, acerta em algumas das respostas imediatas e de longo prazo necessárias para lidar com esse aumento importante da corrente imigratória”, segundo Mittelstadt.

“As diversas formas de assistência para a América Central representam um reconhecimento dos fatores profundos na região que são responsáveis por uma parte da corrente imigratória, como a pobreza endêmica, a falta de oportunidades econômicas e a violência das gangues”, destacou Mittelstadt. Mas não fica claro se a nova ajuda representa um compromisso de uma só vez ou é algo de longo prazo, acrescentou. Tampouco está claro o efeito que essa crise terá sobre as tentativas legislativas de reformar as políticas de imigração dos Estados Unidos.

“Creio que essa crise destaca a urgente necessidade de uma reforma migratória integral”, enfatizou Long, da Human Rights Watch. “A reforma migratória abordaria simultaneamente os abusos em curso contra os direitos humanos no sistema de imigração, incluída a separação das famílias e das comunidades que vivem com medo. Também daria certeza sobre a lei e os que são elegíveis ou não para o status legal”, concluiu. Envolverde/IPS