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O passado manda lembranças

crianca

“Da minha infância? Ah, lembro muito pouco!”. Natural buscar entender o passado, a formação, os hábitos e as relações familiares quando a questão é entender a queixa de um jovem de vinte e poucos anos acometido de depressão, ansiedade ou tantos outros transtornos aceitos atualmente quase como triviais. No entanto, especialmente entre as crianças e jovens, essas lembranças têm se tornado cada vez mais escassas e pontuais: “Meu aniversário num buffet, a primeira excursão, a formatura, o debut, a viagem pra Disney, a primeira balada… Episódios que, em sua maioria, envolveram consumo e, claro, muitas fotos para as redes sociais.

Somos o resultado de nossas experiências, de todas elas indistintamente. Quem compraria um livro faltando uma página? No entanto, as conversas triviais em torno da mesa, as traquinagens entre irmãos, a primeira volta de bicicleta sem as rodinhas, o lugar preferido de cada um na mesa, o castigo, a bronca, o tombo memorável e os tantos eventos que protagonizamos vêm sendo, amiúde, rebaixados à categoria de “nada a ver” como classifica a moçada.

Tal qual um clipe dinâmico, essas memórias do dia-a-dia, vêm se compactando num enfadonho roteiro de comprar, malhar, ostentar, beber, fumar e seduzir. De que histórias nossas crianças se lembrarão para contar aos filhos se, mesmo numa roda de amigos, cada um preferir “conversar” com a tela de seu celular? Mais ou menos como atirar fora uma maçã e comer sua fotografia. Exata e lamentavelmente como um bando de crianças estourando balões tediosos e comendo tranqueiras numa lanchonete blindada de vidros, tendo ao lado um parque com ar de verdade, gramados para piquenique e liberdade para criar.

Quando a publicidade promete: “Você vai chegar lá!”, contribui para esse desvio de atenção do aqui e agora para um lugar que, na verdade, não existe, da mesma forma que não existem limites para a ambição material. O momento presente se reduz, enfim, a um mero trampolim para o momento seguinte onde supostamente estará o sucesso, o futuro pronto, a felicidade parcelada no cartão. Não é difícil imaginar o quanto de vazio e de crise de identidade pode advir dessa corrida para futuro nenhum.

Para lembrar onde colocamos a chave do carro, temos que estar presentes no ato: “Vou colocar estas chaves aqui neste lugar!”. E não será o quanto foi gasto ou o nome da grife por trás do evento vivido que tornarão nossas lembranças mais ou menos valiosas, mas sim a capacidade de vivê-las. Proteger nossas crianças da compulsão consumista é contribuir também para que elas cresçam sem perder um capítulo sequer da história que estão construindo. É possibilitar que contemplem a riqueza de cada experiência, do modo como um Drummond, entre tantos igualmente atentos à vida, nos ensina a contemplar, emocionando com tão pouco e gastando absolutamente nada:

“Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais”

Maria Helena Masquetti é graduada em psicologia e comunicação social, possui especialização em psicoterapia e realiza atendimento clínico em consultório desde 1993. Exerceu a função de redatora publicitária durante 12 anos e hoje é psicóloga do Instituto Alana.