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Extremistas do Paquistão se vestem de trabalhadores humanitários

Diante do temor da presença de extremistas, as autoridades vigiam de perto os acampamentos instalados por organizações humanitárias em Bannu, na província paquistanesa de Jyber Pajtunjwa. Foto: Ashfaq Yusufzai/IPS
Diante do temor da presença de extremistas, as autoridades vigiam de perto os acampamentos instalados por organizações humanitárias em Bannu, na província paquistanesa de Jyber Pajtunjwa. Foto: Ashfaq Yusufzai/IPS

 

Peshawar, Paquistão, 5/8/2014 – Muhammd Tufail, de 22 nos, é voluntário na província de Jyber Pajtunjwa do braço humanitário de uma organização que o governo do Paquistão considera terrorista. Comovido pela situação de quase um milhão de refugiados na Agência de Waziristão do Norte, uma das Áreas Tribais Administradas Federalmente (Fata) deste país, Tufail distribui alimentos e remédios aos residentes nos enormes acampamentos de refugiados.

Ele e outros voluntários atendem às necessidades de aproximadamente dez mil famílias por dia. “Não podemos deixar nossa gente desamparada”, afirmou à IPS o jovem, oriundo de Mardan, um dos 26 distritos que formam Jyber Pajtunjwa, na fronteira com o Afeganistão. Sua paixão é admirável, mas a organização para a qual trabalha, a Fundação Al Rehmat (ART), é de duvidosa procedência.

O grupo humanitário é considerado uma camuflagem para o proscrito Jaish e Mohammed (O Exército de Maomé, JEM), com sua base na região indiana da Caxemira. Proibido no Paquistão desde 2002, o JEM é considerado um organização terrorista, acusada de praticar um atentado contra o parlamento da Índia em 2001. Embora o grupo tenha um perfil baixo desde 2003, sua enorme quantidade de membros se revela em tempos de crise nacional como um eficiente provedor de ajuda.

“Fomos os primeiros nos trabalhos de resgate do terremoto que atingiu o norte do Paquistão em 2005. Resgatamos as pessoas dos escombros e salvamos suas vidas. A ART ajuda as pessoas desinteressadamente”, afirmou Tufil.  Essa atitude, expressa por dezenas de jovens nessas organizações, preocupa muito as autoridades pela influência que esses grupos extremistas exercem em tempos difíceis.

“Vigiamos de perto os acampamentos de ajuda organizada pelos grupos jihadistas. Queremos garantir que não sejam usados para recrutar os civis com fins terroristas”, explicou Akram Khan, um inspetor de policia de Bannu, o distrito de Jyber Pajtunjwa onde fica a maioria dos refugiados. O inspetor teme que os acampamentos em expansão, cheios de civis desesperados, vulneráveis e traumatizados, sejam um campo de recrutamento perfeito para radicais disfarçados de trabalhadores humanitários.

“Os refugiados precisam de ajuda monetária e social”, que recebem dos jihadistas, pontuou Khan à IPS. “O país vive tempos difíceis por causa do terrorismo. Não podemos permitir que os grupos armados cresçam à custa dos refugiados”, acrescentou. Mas é exatamente isso o que estaria acontecendo, segundo o analista político Khadim Hussain, presidente da Fundação Educativa Baacha Khan.

A Jamat ud-Dawa (JUD), uma organização de estilo missionário que é uma fachada do temido Lashkar-e-Taiba (Exército dos Bons, LTE) também realiza ações humanitárias e conquista o apreço de muitos que consideram insuficiente a resposta oficial às emergências da natureza ou provocadas pelo homem, acrescentou Hussain.

A Fundação Falah-e-Insaniyat (FIF), que seria outra fachada do LET, também entrega remédios e alimentos para milhares de famílias necessitadas. “Fomos os primeiros a chegar a Bannu e começar o trabalho de socorro porque não podia suportar ver nossos irmãos muçulmanos em crise”, disse à IPS o voluntário Muhammad Shafiq, da ART.

Shaukat Ali Massud, um refugiado com sete familiares aos seus cuidados, disse estar “agradecido às duas organizações por sua sinceridade e dedicação”, e que “eles nos ajudam. Não são terroristas, apenas muçulmanos muito bons”. Massud conhece dezenas de famílias que receberam a ajuda de algum dos numerosos grupos considerados braços humanitários das organizações radicais. “Nunca esqueceremos sua ajuda nesses tempos difíceis”, afirmou à IPS.

Para Índia, Estados Unidos e Grã-Bretanha, o JEM e o LET são “organizações terroristas mortais”, que combatem na zona da Caxemira, disputada por Índia e Paquistão. Devido à forte pressão internacional, os dois grupos mantêm um perfil relativamente baixo, mas a crise humanitária desatada pela ofensiva do governo para sufocar o movimento islâmico Talibã na fronteira com o Afeganistão, fez com que JEM e LET voltassem ao cenário, segundo Muhammad Shoaib, analista da Universidade de Peshawar.

“Esses grupos, com ajuda do Estado, têm cuidado em manter suas alas humanitárias para demonstrar que são mais do que formações extremistas”, observou Shoaib à IPS. Numerosas organizações não governamentais laicas que querem ajudar os refugiados não conseguiram o certificado de não objeção, um documento público que lhes dá autorização oficial para suas atividades.

Entretanto, organizações como a ART trabalham sem obstáculos com as populações refugiadas. “Os governos e os oficiais do exército cooperam muito. Tudo funciona sem complicações”, contou Shafiq, voluntário da ART.

O JUD, acusado de realizar o atentado de 2013 contra o consulado indiano na cidade afegã de Jalalabad, também é muito ativo em casos de desastres naturais, embora o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) o tenha qualificado de terrorista em 2008. O governo do Paquistão assegura que não há provas que vinculem o grupo com atividades terroristas.

“Dirigimos hospitais, escolas e colégios para pessoas pobres no Paquistão”, afirmou Hafiz Muhammad Saeed, fundador do JUD e acusado pelo governo da Índia de planejar os atentados terroristas de Bombaim, em 2008. “A ajuda aos refugiados é nosso dever primordial. Enviamos socorro no valor superior a US$ 5 milhões às áreas inundadas do Paquistão, em 2010, e até agora entregamos provisões no valor de US$ 2 milhões em Bannu”, detalhou à IPS.

A FIF, que estaria estreitamente relacionada com o LET e o JUD, também desempenha uma função importante. “Enviamos 500 voluntários a Bannu. Quase todos os dias enviamos dez caminhões com suprimentos de emergência”, afirmou à IPS, seu presidente Hafiz Abdur Rauf.

Embora os refugiados agradeçam a ajuda, as autoridades estão decididas a acabar com o que consideram grupos radicais que se infiltram nas populações vulneráveis para recrutar seus combatentes. “Como vimos durante o terremoto de 2005, na operação militar em Swat de 2009 e nas inundações de 2010, esses grupos utilizam o trabalho de caridade para ganhar a simpatia das pessoas do Paquistão”, mediante ajuda moral e econômica, apontou Hussain.

Em lugar de permitir a radicalização dos refugiados, o governo deve “desradicalizar” os extremistas para conseguir a paz duradoura, destacou Hussain. “A guerra contra os radicais na província do norte não terá sentido se ao mesmo tempo permitir que cresçam com impunidade outras entidades extremistas”, enfatizou à IPS. Envolverde/IPS