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Potências toleram o Hezbolá pela estabilidade do Líbano

Cartaz no vale de Becá, no Líbano, com a imagem de um “mártir” do Hezbolá morto no conflito sírio. Foto: Shelly Kittleson/IPS
Cartaz no vale de Becá, no Líbano, com a imagem de um “mártir” do Hezbolá morto no conflito sírio. Foto: Shelly Kittleson/IPS

 

Beirute, Líbano, 7/8/2014 – A preocupação das potências do Ocidente pelo apoio que dão às forças armadas do Líbano, que em sua opinião colaboram com uma “organização terrorista”, se desenhou nos últimos tempos, pela prioridade de apoiar a estabilidade do país diante dos impactos do crescente conflito na região.

O fato de o Hezbolá (Partido de Deus), uma organização política com uma força paralela às forças armadas libanesas, já não ocultar sua participação nos combates na fronteira sírio-libanesa não faz muita diferença, embora os Estados Unidos e a União Europeia (UE) o designem oficialmente como uma organização terrorista.

Quando se viaja pelo vale de Becá, os cartazes dos shahid, ou mártires do Hezbolá, no conflito sírio competem por espaço com aqueles dos populares imãs xiitas e do líder da organização islâmica, Hassan Nasralah. Em recente visita à região, a IPS observou um cartaz com os rostos de Nasralah, de outro dirigente xiita e do presidente sírio, Bashar Al Assad, onde se lia “assim são os heróis”.

No dia 26 de julho, o Hezbolá anunciou em comunicado que o sobrinho de Nasralah, Hamzah Yassin, morreu no cumprimento de seu “dever jihadista em defesa dos lugares santos”, dando a entender que perdeu a vida em um combate na Síria.

O apoio dos Estados Unidos e de outros países às forças armadas serviu por muito tempo como reduto contra a extrema volatilidade deste pequeno país do Oriente Médio, com grande diversidade religiosa entre seus 4,8 milhões de habitantes. Ao mesmo tempo, as potências ocidentais tiveram o cuidado de evitar que o Líbano adquirisse tanto poder a ponto de ameaçar Israel, seu vizinho do sul e protegido dos Estados Unidos.

O Hezbolá, inimigo jurado de Israel, ao qual denomina “entidade sionista”, continua afirmando que seu arsenal mais poderoso é destinado à luta contra as forças israelenses, embora dirija cada vez mais seus recursos e seus homens ao combate à insurgência na Síria. Simultaneamente, parece ganhar cada vez mais influência nos círculos políticos e militares do Líbano.

Acredita-se que o Hezbolá “tem muita influência na direção da inteligência militar, em particular – o que faria sentido – já que é o organismo que, potencialmente, vigiaria” o Partido de Deus, apontou Yazid Sayigh, sócio-diretor do Centro Carnegie do Oriente Médio, um grupo de pesquisa em Beirute.

Quanto ao deslocamento de seus combatentes e suas armas pelas fronteiras, “o Hezbolá tem muito poder de fato. Atua de maneira autônoma nesses dois temas. Deve ter algum tipo de acordo que permite trazer seus mortos e feridos”, por exemplo, afirmou Sayigh à IPS. Também é possível que os desloquem por vias que ninguém, inclusive o exército, tem permissão para usar”, acrescentou.

Em comparação com as forças armadas, o Hezbolá “tem mísseis mais pesados e de maior alcance”, disse Sayigh. Porém, as forças armadas se beneficiarão “se concretizarem seu programa atual de desenvolvimento, porque, então, terão à sua disposição importantes armamentos atualizados, sistemas de transporte e outros”, acrescentou.

Em janeiro, a Arábia Saudita prometeu ajuda de US$ 3 bilhões e o Grupo Internacional de Apoio ao Líbano se comprometeu, em junho, a proporcionar capacitação, além de outros apoios. A este último se integram a Organização das Nações Unidas (ONU), a UE, a Liga Árabe e os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU.

Mas a vantagem estratégica fundamental do Hezbolá está em “sua superior organização, inteligência e gestão do campo de batalha, e a estreita relação com os dirigentes políticos e militares”, algo que falta às forças armadas, segundo Sayigh. “Comenta-se também que tem muito peso na escolha, no recrutamento e na promoção dos oficiais xiitas no exército”, acrescentou.

Quanto ao controle das fronteiras e o contrabando de armas de grupos rebeldes sírios, “quando o Hezbolá aceitou o envio policial para seus redutos no sul de Beirute, isso possibilitou que o exército ampliasse sua presença ao longo das fronteiras do norte e leste e fosse um pouco mais efetivo”, afirmou o especialista.

A proporção entre soldados rasos e altos comandos, entre outras coisas, mina a eficácia das forças armadas, já que fica em algo abaixo de um general para cada cem soldados, em comparação com o exército dos Estados Unidos, que em outubro de 2013 tinha um para cada 1.357, segundo estudo publicado este ano.

O Hezbolá, que é mais eficiente do que as forças armadas regulares, é considerado uma organização jihadista. Consultado se o grupo é comparável às organizações jihadistas sunitas, Sayigh disse que “é uma organização islâmica, mas concordou que não pode construir um Estado islâmico no Líbano”.

Para Sayigh, na “medida em que são mobilizados combatentes xiitas do Irã ou do Iraque para combater na Síria, vemos uma forma crescente de jihadismo xiita”. Isso significa “gente que luta em defesa da doutrina xiita, em proteção dos santuários xiitas”, mas o “Hezbolá se destaca por trabalhar em um contexto político e militar muito mais cuidadoso”, acrescentou.

Entretanto, “recruta cada vez mais gente fora de suas próprias fileiras, o que mostra um nível maior de mobilização da comunidade xiita. Não fica claro se pagam, ou não, a essas pessoas”, pontuou Sayigh. Mustafá Allouch, chefe do ramo do Partido do Futuro na cidade libanesa de Trípoli e ex-legislador, afirmou que a organização “está pagando muito dinheiro. Dizem que o Hezbolá oferece US$ 20 mil para um ‘mártir’ com enterro público, e US$ 100 mil se os pais concordarem com um enterro sem funeral”.

Em relação ao apoio financeiro que Washington dá ao Líbano, Sayigh observou que é uma “decisão estratégica de continuar cooperando com o governo e o exército libanês, ainda que o Hezbolá integre o governo de coalizão”, e assegurou que “o país está frágil e em graves problemas econômicos, e que os Estados Unidos optaram por não sobrecarregar o sistema libanês a ponto de quebrar”. Envolverde/IPS