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Guido, o neto por DNA de todos os argentinos

Buenos Aires, Argentina, 11/8/2014 – A recuperação do “neto 114”, de filhos de desaparecidos durante a ditadura militar na Argentina, causou uma comoção coletiva que muitos compararam à disputa da final da Copa do Mundo realizada há um mês. Uma compensação histórica para a ferida que atravessou 30 anos de democracia e que começa a sarar.

“Sem palavras”, “emoção”, “alegria”, foram algumas expressões repetidas nas redes sociais que chegaram a um recorde de compartilhamentos no dia 5 de agosto, quando foi anunciada a recuperação do neto da presidente e fundadora da organização Avós da Praça de Maio, Estela de Carlotto.

Um “sem palavras” incapaz de definir uma sensação majoritária, embora não unânime, refletida em todos os meios de comunicação, sem distinção ideológica. “A luta incansável pela busca do sangue nunca pode ser discutida, é tão natural, tão lógica, tão correta que ninguém pode permanecer indiferente a isso”, disse à IPS a advogada Marta Eugenia Fernández, da Universidade de Buenos Aires.

“Obrigado, muito obrigado”. Com estas palavras Guido Montoya Carlotto publicou a foto do primeiro encontro com sua avó Estela de Carlotto, em sua conta no Twitter @IgnacioHurban. Foto: Twitter de Ignacio Hurban
“Obrigado, muito obrigado”. Com estas palavras Guido Montoya Carlotto publicou a foto do primeiro encontro com sua avó Estela de Carlotto, em sua conta no Twitter @IgnacioHurban. Foto: Twitter de Ignacio Hurban

 

A Avós da Praça de Maio busca, desde 1977, as crianças nascidas no cativeiro, ou sequestradas com seus pais, durante o regime militar (1976-1983), que deixou 30 mil mortos e desaparecidos, segundo organizações humanitárias. A busca de Carlotto por seu neto durou 36 anos, a idade que tem hoje “Guido”, como sua mãe queria que se chamasse, ou Ignacio Hurban, como foi registrado pelos pais que o criaram em Olavarría, a 350 quilômetros da Buenos Aires, aparentemente desconhecendo sua origem.

Guido, pianista, compositor e arranjador, fez um teste genético porque tinha dúvidas sobre sua identidade e o resultado deu 99,9% positivo. Sua mãe, Laura Carlotto, militante do desaparecido grupo guerrilheiro Montoneros, deu à luz durante sua prisão clandestina, no Hospital Militar,em 26 de junho de 1978, e dois meses depois foi assassinada, como milhares, em uma das mais cruentas ditaduras da América Latina, região esteve repleta delas no século 20 .

O pai, Oscar Walmir Montoya, músico como o filho, marido e companheiro de militância de Laura, também foi executado pouco depois da detenção de ambos, em novembro de 1977. “Laura Carlotto e Oscar Montoya não voltarão à vida. O dano é infinito e irreparável. A recuperação do filho de ambos é uma reparação imensa para esse dano infinito”, opinou o jornalista Luis Bruschtein no jornal Página 12.

Os pais do neto restituído 36 anos depois, Laura Carlotto e Oscar Walmir Montoya. Foto: Avós da Praça de Maio
Os pais do neto restituído 36 anos depois, Laura Carlotto e Oscar Walmir Montoya. Foto: Avós da Praça de Maio

 

“A notícia do reencontro do neto de uma avó símbolo dessa luta é tão cinematográfica quanto ver Lionel Messi (astro argentino do futebol) marcando um gol aos 44 minutos do segundo tempo”, afirmou Fernández. Quase um mês depois do encerramento da Copa do Mundo, quando a Argentina perdeu o título diante da Alemanha, no dia 13 de julho, outros protagonistas dessa paixão nacional recorreram a essa metáfora.

“Não é só o futebol que pode nos unir”, disse o ex-jogador Diego Armando Maradona. Por sua vez, Messi pediu que se continue a lutar porque “restam muitos mais” netos a serem recuperados. Segundo as Avós da Praça de Maio, cerca de outras 400 crianças sequestradas durante a ditadura militar ainda estão desaparecidas. Antes do Mundial, Messi e outros jogadores da seleção argentina apoiaram essa causa com um vídeo que venceu fronteiras.

Mas a sociedade continua dividida, 30 anos depois da restauração da democracia e da publicação, em 1984, do informe Nunca Mais, elaborado pela Comissão Nacional sobre Desaparecimento de Pessoas, perpetrada por militares durante a repressão ilegal. Não é difícil ouvir nas ruas argumentos como o que apresentou à IPS a aposentada Edith Gómez, que falou das crianças sequestradas como os “filhos dos subversivos” e, como argumentam outros, considera que foi “melhor terem sido criados por gente de bem”.

Mas isso está mudando, segundo a psicoanalista Viviana Parajón, graças à adoção, na última década, dos “direitos humanos como política de Estado”. Ela considera que as novas gerações, que nem mesmo foram protagonistas ou vítimas diretas da ditadura, estão incorporando conceitos como o repúdio aos crimes de lesa humanidade.

A especialista se refere a medidas como a criação do Dia Nacional da Memória pela Verdade e pela Justiça, em 24 de março, quando se produziu o golpe militar, aprovado pelo Congresso em 2002 e que em 2005 foi declarado feriado pelo então presidente Néstor Kirchner (2003-2007). Também foi incorporada ao currículo escolar a questão da memória da ditadura e de outros genocídios.

“Até há alguns anos, a questão dos desaparecidos era defendida por um setor muito pequeno da sociedade, o resto tinha posturas que iam desde a indiferença até a teoria dos dois demônios”, explicou Parajón à IPS. Assim é conhecida na Argentina a tese que justifica que os abusos contra os direitos humanos cometidos pelo Estado durante a ditadura foram equiparáveis – e responderam – à violência armada das organizações guerrilheiras.

“O nefasto e horroroso é que o fizeram transcender e aniquilaram não só aquela geração mas várias outras”, observou Parajón, para quem, neste sentido, a recuperação de Guido tem um efeito de “cura” social. “É como um neto de todos, uma reparação desse horror”, destacou.

Para Fernández, este caso “nos desperta da letargia, nos sacode a fibra mais íntima porque pessoalmente todos somos filhos, pais ou avós, e no social compartilhamos uma mesma história, e isso, como o sangue ou DNA, não se apaga, permanece ali latente até que um fato surpreendente nos coloca diante dessa identidade comum, que tampouco pode ser discutida ou arrebatada”.

A psicóloga e jornalista Liliana Helder afirmou na Televisão Pública Argentina que após outros genocídios históricos, como dos judeus e armênios, há estudos mostrando que “duas ou três gerações depois vivem as consequências daquilo, que ficou inconcluso. O aparecimento de cada neto é um pouco de bálsamo na ferida”, ressaltou.

Mas uma história como a de Carlotto e Guido, que termina como o final feliz de um filme, no qual a avó de 83 anos finalmente pode abraçar o neto arrebatado antes de morrer, nada melhor do que deixar o protagonista explicar.

“Se apedrejando o poeta acredita-se matar a memória, que mais resta a esta terra que vai perdendo sua história”, diz em sua composição Para a Memória o até agora Ignacio Hurban, que em outro roteiro cinematográfico, há dois anos participou do ciclo Música Pela Identidade, organizado pela Avós da Praça de Maio.

“O exercício de não esquecer nos dará a possibilidade de não repetir”, diz outra estrofe da canção do agora Guido Montoya Carlotto, composta quando ainda desconhecia sua verdadeira identidade e antes de passar a simbolizar a recuperação da identidade de seu país. Envolverde/IPS