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As tarefas do cuidado aumentam a carga das cubanas

Mulheres compram alimentos em uma feira agropecuária no bairro Playa, em Havana. Sobre elas recaem mais de 98% do trabalho doméstico e o cuidado familiar não remunerado nas famílias cubanas. Foto: Jorge Luis Baños/IPS
Mulheres compram alimentos em uma feira agropecuária no bairro Playa, em Havana. Sobre elas recaem mais de 98% do trabalho doméstico e o cuidado familiar não remunerado nas famílias cubanas. Foto: Jorge Luis Baños/IPS

 

Havana, Cuba, 14/8/2014 – A cubana Hortensia Ramírez sente que suas mãos devem se multiplicar quando divide a atenção à sua mãe de 78 anos, que sofre de arteriosclerose, com os afazeres do lar e a confecção de doces caseiros para o sustento familiar. Seu dia começa às seis da manhã, lavando a roupa molhada durante a noite por sua mãe, ao mesmo tempo em que prepara a massa dos doces e o almoço dos dois filhos, um estudante do segundo grau e outro de informática.

“Há dois anos deixei meu trabalho como enfermeira porque minha mãe não podia ficar sozinha e, apesar de ter um irmão que ajuda nas despesas, a atenção diária é minha responsabilidade”, contou à IPS Hortensia, de 57 anos, que se separou de seu segundo marido pouco antes de sua mãe começar a precisar de cuidado contínuo. “Desde então minha vida se resume em atendê-la, mas cada vez é mais complicado conseguir comida, remédios e nem pensar em fraldas descartáveis por causa da minha renda limitada. Enfim, acabo muito esgotada”, afirmou.

Como a maioria das cubanas de idade média, Hortensia carrega nos ombros as responsabilidades domésticas e de cuidado familiar, intensificadas por carências econômicas após mais de 20 anos de crise neste país caribenho de governo socialista. Esta função tradicional do cuidado apresenta iniquidades de gênero e as deixa vulneráveis diante das reformas empreendidas pelo governo de Raúl Castro desde 2008 para buscar eficiência econômica e produtividade, sem acompanhamento de reajustes salariais.

A redução do número de escolas onde estudantes combinam aprendizado e trabalho em regime interno e na área rural, o fechamento de restaurantes para trabalhadores e os cortes no orçamento da assistência social deixam sozinhas as famílias diante de tarefas que antes eram compartilhadas com o Estado e afetam, sobretudo, a metade feminina dos 11,2 milhões de habitantes do país.

“O Estado está passando uma parte da carga do cuidado e da atenção à saúde e educação para as famílias, mas o desenvolvimento econômico obrigatoriamente deve olhar a contribuição de entornos familiares”, apontou à IPS a economista Teresa Lara. Se ninguém cozinha, garante a higiene coletiva, apoia o ensino ou atende os idosos e enfermos, a força de trabalho não se reproduz, disse a especialista.

Entretanto, essas tarefas, quase sempre a cargo das mulheres, permanecem invisíveis e sem remuneração. Quando contam suas atividades cotidianas no lar, as cubanas dedicam 71% de suas horas de trabalho aos afazeres domésticos não remunerados, segundo demonstrou a única Pesquisa do Uso do Tempo já divulgada, que em 2002 realizou a Oficina Nacional de Estatísticas.

A pesquisa, com resultados que continuam vigentes atualmente segundo especialistas, mostra que, para cada cem horas de trabalho masculino, as mulheres ocupavam 120, muitas delas realizando atividades simultâneas, como cozinhar, limpar, lavar e cuidar das crianças.

Estimativas de Lara a partir dessas tendências estabelecem que a contribuição dos serviços domésticos e de cuidado não remunerados ao Produto Interno Bruto (PIB) nacional foi de quase 20%, superior à indústria manufatureira. Na atualidade, esses valores podem ser mais elevados devido à complexidade da vida cotidiana, pontuou a economista.

Sem lavanderias, tinturarias, indústrias ou outros serviços de apoio à família a preços acessíveis, as famílias cubanas devem redobrar os esforços para cobrir a necessidades domésticas sem grandes gastos. A isto se soma a deterioração dos asilos para idosos, das creches estatais e a redução do orçamento para a assistência social, que passou de US$ 656,2 milhões em 2008 para US$ 262,9 milhões em 2013, segundo o Escritório Nacional de Estatísticas e Informação (Onei).

Prescindir de cargos com maior hierarquia ou abandonar o emprego remunerado são algumas das consequências desse panorama para as cuidadoras. Muitas estão diante do conflito de conciliar cuidado e subsistência, em um país onde o salário médio mensal pouco supera os US$ 20, e o gasto mínimo cotidiano em uma família pode triplicar esse valor, mesmo com subsídios estatais de alguns alimentos e serviços.

Segundo a Onei, a taxa de desocupação feminina aumentou de 2% em 2008 para 3,5% no ano passado, em paralelo às demissões projetadas pelo governo, que proximamente poderão somar um milhão de desempregados. O incentivo do trabalho por conta própria ou as atividades econômicas informais dentro do lar são uma alternativa, mas nem sempre garantem a segurança social. Tampouco aproveitam a experiência feminina acumulada por ser mais de 66% da força profissional e técnica do país.

A socióloga Magela Romero acredita que o papel social de cuidadoras é violento para as mulheres, porque expressa relações de poder desiguais entre os gêneros, com sequelas econômicas, emocionais, sexuais e psicológicas para elas.

Uma pesquisa qualitativa com 80 moradoras de Havana, realizada pela professora universitária em 2010, à qual a IPS teve acesso, conclui que várias das entrevistadas viviam “o ciclo do cuidado sem fim”: uma vez terminada a fase estudantil passam toda a vida atendendo filhos, pais, sogros, netos e maridos, entre outros familiares. Esta situação se agrava em um país com tendência ao envelhecimento, onde 18% das pessoas têm mais de 60 anos e vivem em 40% das famílias.

A contadora Adriana Díaz sabe bem disso, ela que só pôde exercer sua profissão por menos de uma década. “Primeiro chegaram os filhos e me dediquei a eles. Depois me divorciei e entrei no mercado de trabalho por quatro anos, os melhores anos da minha vida. Mas, quando minha mãe ficou gravemente doente, voltei a deixar o trabalho”, contou à IPS esta mulher de 54 anos. Quase nove anos entregue inteiramente a esta tarefa deixaram Díaz com sequelas lombares e uma insuficiência cardíaca. E, para se sustentar, depende inteiramente de seus filhos, que partiram para o exterior.

A pesquisadora social María del Carmen Zabala considera que as brechas de gênero do cuidado familiar exigem políticas que tratem de maneira particular as mulheres, de acordo com as atuais mudanças do país. O aumento das famílias chefiadas por mulheres chega a 45%, segundo o Censo de População e Habitação de 2012, leva esta especialista a solicitar políticas específicas para as famílias monoparentais femininas por serem as mais vulneráveis.

Cubanas e emprego

– Em Cuba há 6.976.100 pessoas em idade de trabalhar, entre elas 5.086.000 constituem a população ativa. As mulheres em idade profissional são 3.326.200, das quais 1.906.200 estão empregadas.

– As mulheres que trabalham no setor estatal se concentram fundamentalmente nos serviços, onde somam 1.071.400.

– Mais de 31 mil cubanas são cooperativistas, 175.500 trabalham no setor privado e, destas, 73.300 são trabalhadoras por conta própria.

– Existem 1.854.753 pessoas dedicadas aos afazeres do lar, das quais 92% são mulheres.

– Das 67.664 desempregadas, 19.360 eram chefes de família. Envolverde/IPS

* Fontes: Anuário Estatístico 2013 do Escritório Nacional de Estatísticas e Informação e Censo de População e Habitação 2012.