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Várias iniciativas buscam “romper o silêncio” sobre a escravidão

Músico de jazz Marcus Miller (esquerda), porta-voz do Projeto Roda do Escravo, usa a música para educar a população sobre a escravidão. Por A. D. McKenzie/IPS
Músico de jazz Marcus Miller (esquerda), porta-voz do Projeto Roda do Escravo, usa a música para educar a população sobre a escravidão. Por A. D. McKenzie/IPS

 

Paris, França, 17/9/2014 – O filme Doze Anos de Escravidão, que obteve três Oscar este ano, entre eles o de melhor filme, abriu os olhos de muita gente para essa barbárie e gerou debates sobre esse período da história da humanidade. Mas é só uma das muitas iniciativas para “romper o silêncio” sobre os 400 anos do tráfico transatlântico de escravos.

Uma das iniciativas que também procurar “lançar uma luz” sobre as consequências da escravidão é o Projeto Rota do Escravo, que completou 20 anos este mês em Paris, promovendo uma maior educação sobre o fenômeno nas escolas de todo o mundo.

“O mínimo que a comunidade internacional pode fazer é colocar essa história nos livros de texto”, disse Ali Moussa Iye, diretor da seção História e Memória para o Diálogo,da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), encarregado do projeto. “Não se pode negar essa história aos que a sofreram e continuam experimentando as consequências da escravidão”, afirmou.

O projeto é um dos impulsores do memorial permanente para a escravidão, em construção na sede da Organização das Nações Unidas (ONU) em Nova York, que ficará pronto em março de 2015, em honra aos milhões de vítimas do tráfico humano.

A Unesco também participa da Década Internacional para as Pessoas Afrodescendentes (2015-2025), que tem o objetivo de reconhecer um grupo de população distinta e “atender as violações históricas e atuais de seus direitos”. O lançamento oficial dessa iniciativa acontecerá em janeiro do próximo ano.

“O enfoque não aponta a culpa, mas busca a reconciliação. Temos de reconhecer a história de uma forma diferente, mais pluralista, para tirar lições e compreender nossas sociedades”, explicou Iye à IPS. “Todo tipo de gente sofreu por causa da escravidão e todo tipo de gente se beneficiou dela, assim como agora há pessoas se beneficiando da escravidão atual. O racismo é um resultado direto dessa horrorosa herança e precisamos ampliar o diálogo sobre esse assunto”, acrescentou.

Segundo a Unesco, o Projeto Rota do Escravo colocou esses temas na agenda internacional ao contribuir para o reconhecimento da escravidão e do tráfico de escravos como crimes contra a humanidade, uma declaração feita na Conferência Mundial Contra o Racismo, realizada na cidade sul-africana de Durban, em 2001.

Além disso, a Unesco coletou e preservou arquivos e tradições orais, apoiou a publicação de livros e identificou “lugares para a recordação, para que os itinerários da memória” possam ser desenvolvidos. Entretanto, para as pessoas afrodescendentes é preciso fazer muito mais para criar consciência.

Ricki Stevenson, uma empresária afrodescendente que dirige a companhia Black Paris Tours, concentrada na contribuição da diáspora africana à capital francesa, pontuou à IPS que deveria haver “conversações nacionais e internacionais sobre os contínuos efeitos da escravidão”.

Segundo Stevenson, “é preciso quebrar o silêncio sobre como o racismo continua magoando, não só as pessoas negras, mas a todos em qualquer país que mate, prenda, negue a educação e os direitos individuais. Estados Unidos, França e todos os países europeus fizeram quantidade inimaginável de dinheiro à custa do sequestro cruel, desumano, e da escravização de milhões de africanos”.

Para essa empresária, “essas nações ficaram ricas, construíram suas cidades e suas economias sobre a escravização de africanos, sobre o trabalho forçado das pessoas negras, que foram privadas de seus direitos humanos básicos e tratadas pior do que os animais. Atualmente, sabemos que a riqueza de Wall Street e de muitas corporações; companhias de seguros, de transportes, bancos, famílias e até igrejas, continuam ligadas à escravidão”.

Ali Moussa Iye, diretor do Projeto Roda do Escravo, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Foto: A. D. McKenzie/IPS
Ali Moussa Iye, diretor do Projeto Roda do Escravo, da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Foto: A. D. McKenzie/IPS

Por essa razão, acrescentou Stevenson, “tenho dúvidas de que alguém que nunca tenha vivido nos Estados Unidos seja capaz de compreender o grave desafio que significa ‘respirar sendo negro’. É um fato cotidiano horrível que todo homem, mulher, menina ou menino negro enfrentou ou enfrentará em algum momento de sua vida”.

Na França, o crescimento do nacionalismo gera uma cultura de exclusão e racismo, segundo observadores políticos. A ministra da Justiça, Christiane Taubira, por exemplo, autora de uma lei de 2001 que leva seu nome e também reconhece a escravidão como um crime contra a humanidade, foi alvo de ataques racistas nos meios sociais e em determinadas publicações.

No contexto da cerimônia pelo 20º aniversário do Projeto Rota do Escravo, Taubira descreveu sua luta contra o ódio e apontou que o desafio atual é compreender as forças globais que dividem as pessoas para a exploração. “Não podemos aceitar esse tipo de falta de humanidade”, ressaltou, acrescentando que “as vítimas anônimas” não foram apenas vítimas, mas “sobreviventes, criadores, artistas, guias e resistentes”, apesar da imensa violência que sofreram.

Algumas pessoas e municipalidades da França trabalharam para realçar o papel ativo desse país no tráfico transatlântico de escravos, mediante projetos culturais e para preservar a memória. A cidade portuária de Nantes, que ficou muito rica com a escravidão no século 18, construiu um memorial para as vítimas em 2012.

Os historiadores concordam que mais de 40% do tráfico de escravos da França ocorreu por essa cidade, que funcionou como porto de transbordo de aproximadamente 450 mil africanos levados à força para a América. Mas essa parte da história de Nantes se manteve oculta durante anos até que a iniciativa de “quebrar o silêncio” se acumulou no Memorial para a Abolição da Escravidão.

Na Grã-Bretanha, a cidade de Liverpool tem um Museu Internacional da Escravidão, e Catar e Cuba também abriram museus dedicados a esse período histórico, mediante projetos com apoio da Unesco.

O aclamado músico de jazz norte-americano Marcus Miller, porta-voz do Projeto Rota do Escravo, também usa a música para educar a população sobre a escravidão. Antes de uma destacada atuação em Paris com músicos africanos, Miller ressaltou que quer se concentrar na resistência e resiliência das pessoas escravizadas e das que lutaram para acabar com essa atrocidade que durou vários séculos. Envolverde/IPS