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A realidade invisível dos espanhóis sem teto

Pessoas em exclusão social em uma barraca da associação Ángeles Malagueños de La Noche, cujos voluntários distribuem as três refeições diárias no centro de Málaga, na Espanha. Foto: Inés Benítez/IPS
Pessoas em exclusão social em uma barraca da associação Ángeles Malagueños de La Noche, cujos voluntários distribuem as três refeições diárias no centro de Málaga, na Espanha. Foto: Inés Benítez/IPS

 

Málaga, Espanha, 28/10/2014 – “Se ver dormindo na  rua é um passo muito fácil. Não significa que a pessoa teve uma vida ruim, mas que perdeu seu trabalho e não tem como pagar o aluguel”, conta David Cerezo, enquanto espera pelo almoço distribuído por uma organização humanitária desta cidade do sul da Espanha.

Cerezo de 39 anos, ocupa uma casa imunda no centro de Málaga, junto com outras duas pessoas. Trabalhou como padeiro e confeiteiro, mas a droga truncou sua vida “inteira”, o separou de sua mulher e lhe arrebatou para sempre seus irmãos de 36 e 39 anos. Agora está decidido a se desintoxicar em uma comunidade terapêutica, disse à IPS junto à barraca da associação Ángeles Malagueños de La Noche.

“A maioria dos que comem aqui acabou nas ruas por causa das drogas e do álcool, mas também vêm pais em busca de alimentos para seus filhos e muitos jovens”, disse Cerezo, apontando  para a fila sob o sol do meio-dia onde dezenas de pessoas esperam por uma porção de arroz que solta fumaça dentro de uma grande panela niquelada.

A longa e profunda recessão econômica e o alto nível de desemprego que afeta 24,4% da população ativa, segundo o Instituto Nacional de Estatísticas (INE), empobreceram a população espanhola, enquanto caíram os recursos governamentais destinados aos serviços sociais para os mais desfavorecidos. Dados de meados do ano mostram que, neste país de 47,2 milhões de habitantes, entre 20,4% e 27,3% da população vive abaixo da linha da pobreza, segundo a medição por parâmetros oficiais espanhóis ou europeus.

Tampouco ter um emprego livra os espanhóis de situações de pobreza. A crise aumentou o índice de “pobreza trabalhista” de 10,8% para 12,3% entre 2007 e 2010, segundo o Dossiê de Pobreza EAPN Espanha 2014. E, o que é pior, 27% da população infantil, mais de 2,3 milhões de meninos e meninas, vive na pobreza ou em risco de pobreza, segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).

Nesse contexto, o gasto público destinado a ajudar os mais necessitados foi de US$ 18,982 bilhões, um corte de US$ 2,782 bilhões em relação a dois anos antes, segundo um estudo divulgado em setembro pela Associação de Diretoras e Gerentes de Serviços Sociais.

“Você se vê na rua porque não tem a quem recorrer. E, uma vez que se está por aí, é muito difícil reiniciar o voo”, afirmou Miguel Arregui, de 40 anos. Alto e de cabelo negro, contou à IPS que passou 15 dias “eternos” dormindo no chão, que lhe roubaram duas sacolas com roupas. Separado e com um filho de 11 anos, vive há algumas semanas em um abrigo onde está superando seu vício pela droga.

Cerezo e Arregui são duas das milhares de pessoas sem teto na Espanha, cerca de 23 mil segundo a última pesquisa do INE, de 2012, dado que organizações sociais que os assistem elevam para 40 mil. O informe 2014 sobre exclusão e desenvolvimento social na Espanha, da Fundação Foessa, alerta que há cinco milhões de pessoas afetadas por situações de exclusão severa, 82,6% mais do que em 2007, ano anterior à eclosão da crise financeira que ainda persiste.

As pessoas sem teto estão muito perto, mas sua realidade é muito desconhecida pela população. Vivem e dormem nas ruas ou em diferentes recursos disponíveis para eles devido a múltiplos fatores sociais, estruturais e pessoais, segundo o informe.

Em Málaga dezenas de famílias sem recursos, muitas desalojadas de suas casas por falta de pagamento do aluguel ou da hipoteca, buscam um teto ocupando de forma coletiva prédios vazios de propriedade de bancos ou de construtoras quebradas, formando as chamadas “corralas”, termo que se refere às antigas casas de vila.

Durante o primeiro semestre de 2014, houve 37.214 despejos de moradias, segundo dados do Conselho Geral do Poder Judicial. De 2007 até hoje, são 569.144 procedimentos de execução hipotecária, alerta a Plataforma de Afetados pela Hipoteca (PAH). Por outro lado, há 3,5 milhões de moradias vazias, quantia equivalente a 14% do parque imobiliário, segundo o INE.

Várias pessoas amanhecem nos bancos de pedra perto da barraca que começa a servir o café da manhã às nove horas. “Outro dia fui para o albergue. Me disseram que estava lotado e me deram uma manta”, contou José, de 47 anos, que passou 15 dias preso e confessa que tem de roubar para poder pagar uma pensão onde passar a noite.

“Pode-se mudar o sistema fornecendo, em primeiro lugar, uma moradia de forma permanente e incondicional”, disse à IPS o diretor da Rais Fundação, José Manuel Caballol. Esta organização defende na Espanha o modelo Housing First, dirigido a pessoas que estejam há pelo menos três anos nas ruas e àquelas com doenças mentais, viciadas em drogas ou álcool e deficientes.

Caballol explicou que a realidade é que as pessoas sem teto com problemas graves dificilmente poderão ter acesso a dispositivos especializados de alojamento como abrigos, ou pensões, e se não o fizerem não conseguirão avançar em sua reabilitação ou acabam expulsas do sistema. “Os resultados são espetaculares. As pessoas estão encantadas, cuidam da sua casa e delas mesmas porque querem conservar o que têm”, acrescentou.

O ativista está convencido de que esta metodologia, surgida nos Estados Unidos na década de 1990, “apresenta uma solução definitiva para o problema das pessoas na rua e representa uma economia significativa dos custos do Estado, por exemplo, com atendimento hospitalar. Desde julho, 28 pessoas sem teto vivem em oito moradias em Málaga, dez em Barcelona e mais dez em Madri, algumas cedidas à Rais e outras alugadas pela ONG mediante acordos com prefeituras, fundações e com apoio econômico governamental.

“As mudanças produzidas nas pessoas são muito rápidas”, ressaltou Caballol, destacando o papel dos trabalhadores sociais, psicólogos e técnicos de integração social que escutam, acompanham e ajudam conforme o próprio beneficiário vai decidindo, e não o contrário. “Na rua me sinto indefeso, muito inferior. Perde-se a dignidade e é difícil recuperá-la. Quero sair disto”, disse Miguel Arregui pouco antes de entrar em um abrigo no centro de Málaga.

A ONG Ajuda em Ação alerta que uma em cada cinco pessoas está em risco de exclusão na Espanha. Cerezo acredita que a rede de atenção para as pessoas sem teto não condiz com as necessidades existentes e defende outros modelos, como “casas de acolhida” para os mais vulneráveis com “quartos e orientação de profissionais”.

O número de pessoas atendidas no país pela organização assistencial católica Cáritas aumentou 30% em 2013 com relação ao ano anterior, segundo informe divulgado no dia 29 de setembro. Envolverde/IPS