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Argentina começou o ano livre de gorduras trans

Croissant e café com leite, um clássico desjejum na Argentina, em um típico bar de Buenos Aires. A partir de agora os croissants devem estar livres de gordura trans no país. Foto: Fabiana Frayssinet/IPS
Croissant e café com leite, um clássico desjejum na Argentina, em um típico bar de Buenos Aires. A partir de agora os croissants devem estar livres de gordura trans no país. Foto: Fabiana Frayssinet/IPS

 

Buenos Aires, Argentina, 2/1/2015 – Com a entrada em vigor de uma norma que praticamente proíbe as gorduras trans nos alimentos industrializados, a Argentina começou 2015 com bons presságios para a saúde de sua população. Agora o desafio é que o setor incorpore as novas regras, em um processo de adaptação que começou há seis anos.

“É um passo importante para avançar na prevenção de doenças cerebrovasculares e cardíacas porque, segundo ficou comprovado, essas gorduras são prejudiciais à saúde, aumentando o colesterol ruim (LDL) e reduzindo o bom (HDL)”, explicou à IPS a especialista Lorena Allemandi, diretora da área de políticas de alimentação saudável da Fundação Interamericana do Coração – Argentina (FIC).

A lei, vigente desde 10 de dezembro dentro do Código Alimentar, restringe o conteúdo de ácidos graxos trans (AGT) nos alimentos processados, estipulando que não deve superar 2% do total de gorduras em óleos vegetais e margarinas destinados ao consumo direto, e em 5% do total de gorduras nos demais alimentos.

Baseado em diferentes estudos, o Ministério da Saúde afirma que só com essa medida a Argentina pode chegar a uma redução de 6% na ocorrência de doenças coronárias, em apenas quatro ou cinco anos. Isso implica salvar 1.500 vidas, prevenir cerca de 2.800 infartos cardíacos e mais de cinco mil episódios coronários por ano, detalhou Sebastián Laspiur, diretor de Promoção da Saúde e Controle de Enfermidades Não Transmissíveis, do Ministério da Saúde.

Também estima-se que se economizará para o sistema sanitário nacional até US$ 100 milhões em complicações e tratamentos cardiovasculares, acrescentou Laspiur. Algo ainda mais importante é que favorecerá a inclusão social, ao beneficiar particularmente “os setores mais vulneráveis, que são os que costumam consumir alimentos com mais gorduras trans, por ser mais econômico e às vezes terem menos acesso a outro tipo de alimento”, pontuou.

Os AGT, conhecidos popularmente como gorduras trans, são gerados no processo de hidrogenação de óleos vegetais líquidos para formar gorduras semissólidas, usadas principalmente em alimentos elaborados industrialmente, especialmente em confeitaria. “Pensava-se que eram melhores (do que as gorduras animais), mas com os anos apareceram estudos e, no final da década de 1990, já não havia dúvidas de que eram prejudiciais para a saúde”, recordou Laspiur.

A Argentina é o terceiro país do mundo, depois de Dinamarca e Suíça, a se declarar livre das gorduras trans, e o primeiro do Sul em desenvolvimento. O Chile segue um caminho semelhante, que completará em 2016.

O processo argentino começou em 3 de dezembro de 2010, quando foi dado um tempo de dois anos para óleos vegetais e margarinas, e de quatro anos para os demais alimentos, que venceu em 3 de dezembro de 2014. Mas já desde 2006 era obrigatório informar nos rótulos dos alimentos a porcentagem de AGT que continham. Por isso, Laspiur avalia que, com esse período de adaptação, uma “ampla colaboração” da indústria e o controle das autoridades de vigilância alimentar, não haverá problemas para essa norma ser cumprida plenamente.

Um estudo da FIC, realizado em 2013 em 878 produtos das principais marcas vendidas nos supermercados, detectou que 42 ainda superavam o limite estabelecido, entre eles alfajores, barras de cereais e produtos de padaria.

A incorporação das gorduras trans nos alimentos se generalizou porque ajudou a reduzir custos, além de outras “vantagens industriais”, como melhor conservação de alimentos na época de calor, aumento de sua vida útil ou para evitar o derretimento das coberturas de doces, recordou Allamandi. Por isso, considera um desafio a implantação na pequena e média indústrias, e o controle não só das autoridades sanitárias, como também da sociedade civil.

“Fatores de risco golpeiam mais fortemente em setores mais vulneráveis e esse tipo de política segue nessa linha. O desafio serão as pequenas e médias empresas, porque muitas se localizam no interior do país ou chegam a setores mais vulneráveis por serem mais baratas. Será  importante que essas indústrias acatem e cumpram a norma’, destacou a especialista.

Outro desafio será sua aplicação em indústrias artesanais, como padarias e produtos como facturas, nome dado na Argentina aos doces de panificação, como o croissant.

Laspiur admite que na pequena indústria a fiscalização é mais difícil mas, ao mesmo tempo, considera que haverá uma incorporação indireta da norma. “As pequenas indústrias, como as padarias, elaboram suas massas e facturas com margarinas e coberturas que compram da indústria maior, que, por sua vez, não pode comercializar margarinas com gordura trans. Assim, “não terão esses insumos, porque seus fornecedores já os terão eliminado”, apontou.

Laspiur assegurou que o sindicato das padarias já colabora com outras políticas de saúde, como a redução de riscos de hipertensão arterial mediante a redução do sal em seus produtos. O mesmo afirmou com relação às redes de fast food, que utilizam insumos de fornecedores externos para doces e pães.

As alternativas saudáveis para substituir os AGT dependem de cada produto. Entre outros, recomenda-se óleos vegetais e, se não for possível, que se dê preferência à gordura animal saturada. Institutos públicos contribuem paralelamente para encontrar alternativas de baixo custo para a gordura hidrogenada.

Especialistas do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet) trabalham em duas estratégias dentro do grupo de Biomateriais para Estruturar Alimentos, do Instituto de Tecnologia em Polímeros e Nanotecnologia. A primeira é o uso de uma nova variedade de girassol, o alto esteárico alto oleico, que permite obter gorduras sólidas, e a segunda é a produção de gel protéico a partir de emulsões estabilizadas por proteínas.

“A vantagem principal das alternativas que investigamos é que são matérias-primas muito abundantes no país. Do ponto de vista da saúde, o girassol alto esteárico alto oleico possui como ácido graxo saturado majoritariamente o ácido esteárico, que é considerado neutro no tocante a níveis de colesterol sanguíneo”, explicou à IPS a diretora do grupo, Lidia Herrera.

“A produção de gel protéico permite ter produtos sólidos com o uso de matérias gordurosas líquidas, que podem conter ácidos graxos essenciais para a saúde e, dessa maneira, não consumiríamos nem ácidos graxos saturados nem trans”, acrescentou Herrera. O próximo passo é fazer esses testes em nível piloto, para escalar seus resultados até a fase industrial.

“Não temos um estudo de custos, mas por serem matérias-primas argentinas será mais simples para nossas indústrias terem acesso a esses produtos. De todo modo, nos processos envolvidos não é necessária alta tecnologia como o que deveria ser comparável a importar palma”, afirmou Herrera.

Muitas indústrias empregam matérias graxas interesterificadas, obtidas com enzimas caras ou frações de óleo de palma importada. “Como somos um país produtor de matérias-primas, é uma vantagem poder empregar as nossas”, resaltou Herrera. Os argentinos podem ficar tranquilos que continuarão comendo croissants. “Se forem livres de gordura trans, não desaparecerão”, garantiu Allemandi.

Políticas contra males modernos

A eliminação das gorduras trans dos alimentos processados na Argentina se soma a outras políticas públicas destinadas a reduzir o consumo de sal e o tabagismo, além de aumentar a atividade física.

“Hoje somos mais obesos e sedentários do que nossos avós. Houve mudanças multidimensionais. Eles comiam menos comida industrializada, comida caseira, a vida era diferente. Havia mais tempo para cozinhar e as pessoas se movimentavam mais. Houve mudanças sociais e culturais muito profundas”, apontou Sebastián Laspiur, se referindo aos fatores de risco da atualidade.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), consumir apenas cinco gramas diárias de ácidos graxos trans aumenta em 25% o risco de sofrer doenças cardiovasculares. Por isto, em 2008, foi lançada em nível continental no Rio de Janeiro a iniciativa As Américas Livres de Gordura Trans, para sua substituição na produção de alimentos, à qual aderiram importantes empresas. Envolverde/IPS