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Histórias de guerra impulsionam turismo rural em povoado salvadorenho

O casal Florentino Menjívar (esquerda) e María Dolores Gómez, junto a Víctor Manuel Escalante, ao pé do mural que destaca figuras da guerra civil na comunidade de Dimas Rodríguez, um assentamento de antigos guerrilheiros no município de El Paisnal, que aposta no turismo rural. Foto: Edgardo Ayala/IPS
O casal Florentino Menjívar (esquerda) e María Dolores Gómez, junto a Víctor Manuel Escalante, ao pé do mural que destaca figuras da guerra civil na comunidade de Dimas Rodríguez, um assentamento de antigos guerrilheiros no município de El Paisnal, que aposta no turismo rural. Foto: Edgardo Ayala/IPS

 

El Paisnal, El Salvador, 29/1/2015 – A memória de um sacerdote assassinado durante a guerra civil em El Salvador segue tão viva nesse povoado, que agora é a principal atração para uma iniciativa turística comunitária, com a qual se pretende gerar o desenvolvimento econômico da região. Rota Turística da Memória Histórica é o nome do projeto de El Paisnal, 36 quilômetros ao norte de São Salvador, que gira em torno da figura do sacerdote Rutilio Grande, um jesuíta nascido no povoado e assassinado pelas forças governamentais em 12 de março de 1977, na fase pré-bélica do conflito.

“Padre Rutilio ensinava uma palavra de libertação e compromisso com os mais necessitados, por isso o mataram”, disse María Dolores Gómez, de 62 anos, que, antes de entrar para a guerrilha, em 1980, foi catequista e conheceu o sacerdote. Agora faz parte do Comitê Municipal de Turismo de El Paisnal.

O projeto turístico, cuja primeira etapa começará em março, busca atrair visitantes interessados no contexto político que se viveu antes, durante e depois da guerra civil em El Salvador e, sobretudo, daqueles conhecedores da vida do famoso jesuíta. Rutilio é reconhecido como o primeiro sacerdote assassinado em El Salvador no contexto da guerra civil, que oficialmente começou em 1980 e terminou com os acordos de paz de 1992, com saldo de mais de 70 mil mortos e oito mil desaparecidos.

Após décadas de fraudes eleitorais, executadas pelos militares e pela oligarquia do país no poder, os opositores formaram uma guerrilha que buscava desalojar esses governos militares e estabelecer um regime socialista. Junto com Rutilio também foram mortos seus acompanhantes Manuel Solórzano, que tinha 72 anos, e Nelson Rutilio Lemus, de 16. Os três estão enterrados na igreja do povoado, que já é um lugar de peregrinação de turistas nacionais e internacionais, e será uma parada obrigatória na nova rota turística.

Historiadores e teólogos concordam que, nos anos 1970, a visão conservadora que tinha o então arcebispo de São Salvador, monsenhor Óscar Arnulfo Romero, mudou radicalmente em favor dos pobres após conhecer o trabalho pastoral de Rutilio Grande, e mais ainda após seu assassinato. O próprio Romero foi morto três anos depois, em março de 1980, quando oficiava missa em uma pequena capela na capital salvadorenha.

A Comissão da Verdade, criada ao fim do conflito pela Organização das Nações Unidas (ONU) para investigar os crimes políticos no país, responsabilizou o major do exército Roberto D’Aubuisson como autor intelectual do assassinato. Esse oficial foi fundador do Partido de extrema direita Aliança Republicana Nacionalista (Arena), que governou El Salvador entre 1989 e 2009, quando chegou ao poder o ex-grupo guerrilheiro Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN), que venceu pela segunda vez em março do ano passado.

Antes e durante a guerra, um setor da Igreja Católica salvadorenha assumiu a teologia da libertação, que promovia a luta contra a pobreza e rompia sua tradicional aliança com os grupos de poder. A nova rota turística começa em um lugar conhecido como Las Tres Cruces, no meio do caminho entre El Paisnal e Aguilares, onde um pequeno monumento recorda onde o sacerdote e seus acompanhantes foram metralhados.

“Temos delegações de visitantes estrangeiros e locais que vêm para a celebração da data do assassinato do Padre Rutilio, e o projeto turístico busca criar a infraestrutura necessária para recebê-los melhor”, explicou à IPS o ex-vereador Alexander Torres. Ele acrescentou que a prefeitura de El Paisnal investirá US$ 350 mil para criar uma infraestrutura turística básica, como hotéis rurais e pequenos restaurantes, que serão dirigidos por moradores do povoado e de locais vizinhos.

“O bom é que a comunidade está participando ativamente”, pontuou à IPS o antigo guerrilheiro Florentino Menjívar, de 62 anos, marido de María Dolores Gómez. “Isso está pensado para gerar condições de crescimento para nós, as comunidades”, acrescentou. O casal vive na Comunidade Dimas Rodríguez, um assentamento de ex-guerrilheiros fundado em dezembro de 1992, nas proximidades de El Paisnal, após a desmobilização dos grupos armados.

O assentamento, que é parte da rota turística, leva o nome de Dimas Rodríguez em homenagem a um dos comandantes que lideraram os guerrilheiros estabelecidos no local, todos pertencentes às Forças Populares de Libertação (FPL), um dos cinco grupos armados que integraram a FMNL.

Todo dia 15 de dezembro, data da fundação da comunidade, os habitantes realizam uma parada militar guerrilheira para recordar seu comandante, morto em combate em 1989, e manter viva a história do assentamento, que é assistida por turistas nacionais e estrangeiros. Nos últimos anos, também participam funcionários do governo que no passado foram parte do assentamento de ex-combatentes.

“O atual vice-presidente do país esteve encarregado desse local quando estávamos desmobilizados”, recordou Víctor Escalante, em referência a Oscar Ortiz, o número dois do governo salvadorenho, cujo presidente desde junho de 2014 é o também ex-guerrilheiro Salvador Sáncehz Cerén.

Há planos para iniciar um museu com as armas originais usadas pelos guerrilheiros, mas que foram inutilizadas e cortadas em razão dos acordos de paz. Em um bosque se pensa em recriar um acampamento rebelde. “Eu conservo minha mochila e há quem tenha rádios e outros artefatos de guerra, e entre todos podemos montar um museu”, disse Escalante, de 45 anos.

Os moradores estão se organizando para fornecer serviços aos turistas, e já há grupos trabalhando em alimentação, artesanato e outras atividades vinculadas à nova realidade. O trabalho é escasso em El Paisnal, que tem 4.500 habitantes, onde a maioria se dedica à agricultura e até agora havia poucas oportunidades de trabalho em outros setores.

A rota é completada com um componente de ecoturismo, com visita ao monte El Chino, a sete quilômetros de El Paisnal, e a Conacastera, uma praia na margem do rio Lempa. Também se contempla visitas à Cooperativa San Carlos, que está se adequando para receber e hospedar turistas que quiserem conhecer de perto os processos de produção agrícola local.

Outras regiões do país desenvolvem há vários anos projetos turísticos vinculados ao conflito. O povoado de Perkín, no norte do departamento de Morazán, é o mais conhecido por esses projetos. Ali há um museu onde se pode conhecer o processo da guerra civil, com fuzis, peças de artilharia e até helicópteros derrubados pela guerrilha.

Neste país, o menor da América Central, com 6,7 milhões de habitantes, o Ministério do Turismo informou que a entrada de divisas pelo setor chegou a US$ 650 milhões no primeiro semestre de 2014, uma alta de 33,3% em relação ao mesmo período do ano anterior. Envolverde/IPS