El Paisnal, El Salvador, 29/1/2015 – A memória de um sacerdote assassinado durante a guerra civil em El Salvador segue tão viva nesse povoado, que agora é a principal atração para uma iniciativa turística comunitária, com a qual se pretende gerar o desenvolvimento econômico da região. Rota Turística da Memória Histórica é o nome do projeto de El Paisnal, 36 quilômetros ao norte de São Salvador, que gira em torno da figura do sacerdote Rutilio Grande, um jesuíta nascido no povoado e assassinado pelas forças governamentais em 12 de março de 1977, na fase pré-bélica do conflito.
“Padre Rutilio ensinava uma palavra de libertação e compromisso com os mais necessitados, por isso o mataram”, disse María Dolores Gómez, de 62 anos, que, antes de entrar para a guerrilha, em 1980, foi catequista e conheceu o sacerdote. Agora faz parte do Comitê Municipal de Turismo de El Paisnal.
O projeto turístico, cuja primeira etapa começará em março, busca atrair visitantes interessados no contexto político que se viveu antes, durante e depois da guerra civil em El Salvador e, sobretudo, daqueles conhecedores da vida do famoso jesuíta. Rutilio é reconhecido como o primeiro sacerdote assassinado em El Salvador no contexto da guerra civil, que oficialmente começou em 1980 e terminou com os acordos de paz de 1992, com saldo de mais de 70 mil mortos e oito mil desaparecidos.
Após décadas de fraudes eleitorais, executadas pelos militares e pela oligarquia do país no poder, os opositores formaram uma guerrilha que buscava desalojar esses governos militares e estabelecer um regime socialista. Junto com Rutilio também foram mortos seus acompanhantes Manuel Solórzano, que tinha 72 anos, e Nelson Rutilio Lemus, de 16. Os três estão enterrados na igreja do povoado, que já é um lugar de peregrinação de turistas nacionais e internacionais, e será uma parada obrigatória na nova rota turística.
Historiadores e teólogos concordam que, nos anos 1970, a visão conservadora que tinha o então arcebispo de São Salvador, monsenhor Óscar Arnulfo Romero, mudou radicalmente em favor dos pobres após conhecer o trabalho pastoral de Rutilio Grande, e mais ainda após seu assassinato. O próprio Romero foi morto três anos depois, em março de 1980, quando oficiava missa em uma pequena capela na capital salvadorenha.
A Comissão da Verdade, criada ao fim do conflito pela Organização das Nações Unidas (ONU) para investigar os crimes políticos no país, responsabilizou o major do exército Roberto D’Aubuisson como autor intelectual do assassinato. Esse oficial foi fundador do Partido de extrema direita Aliança Republicana Nacionalista (Arena), que governou El Salvador entre 1989 e 2009, quando chegou ao poder o ex-grupo guerrilheiro Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN), que venceu pela segunda vez em março do ano passado.
Antes e durante a guerra, um setor da Igreja Católica salvadorenha assumiu a teologia da libertação, que promovia a luta contra a pobreza e rompia sua tradicional aliança com os grupos de poder. A nova rota turística começa em um lugar conhecido como Las Tres Cruces, no meio do caminho entre El Paisnal e Aguilares, onde um pequeno monumento recorda onde o sacerdote e seus acompanhantes foram metralhados.
“Temos delegações de visitantes estrangeiros e locais que vêm para a celebração da data do assassinato do Padre Rutilio, e o projeto turístico busca criar a infraestrutura necessária para recebê-los melhor”, explicou à IPS o ex-vereador Alexander Torres. Ele acrescentou que a prefeitura de El Paisnal investirá US$ 350 mil para criar uma infraestrutura turística básica, como hotéis rurais e pequenos restaurantes, que serão dirigidos por moradores do povoado e de locais vizinhos.
“O bom é que a comunidade está participando ativamente”, pontuou à IPS o antigo guerrilheiro Florentino Menjívar, de 62 anos, marido de María Dolores Gómez. “Isso está pensado para gerar condições de crescimento para nós, as comunidades”, acrescentou. O casal vive na Comunidade Dimas Rodríguez, um assentamento de ex-guerrilheiros fundado em dezembro de 1992, nas proximidades de El Paisnal, após a desmobilização dos grupos armados.
O assentamento, que é parte da rota turística, leva o nome de Dimas Rodríguez em homenagem a um dos comandantes que lideraram os guerrilheiros estabelecidos no local, todos pertencentes às Forças Populares de Libertação (FPL), um dos cinco grupos armados que integraram a FMNL.
Todo dia 15 de dezembro, data da fundação da comunidade, os habitantes realizam uma parada militar guerrilheira para recordar seu comandante, morto em combate em 1989, e manter viva a história do assentamento, que é assistida por turistas nacionais e estrangeiros. Nos últimos anos, também participam funcionários do governo que no passado foram parte do assentamento de ex-combatentes.
“O atual vice-presidente do país esteve encarregado desse local quando estávamos desmobilizados”, recordou Víctor Escalante, em referência a Oscar Ortiz, o número dois do governo salvadorenho, cujo presidente desde junho de 2014 é o também ex-guerrilheiro Salvador Sáncehz Cerén.
Há planos para iniciar um museu com as armas originais usadas pelos guerrilheiros, mas que foram inutilizadas e cortadas em razão dos acordos de paz. Em um bosque se pensa em recriar um acampamento rebelde. “Eu conservo minha mochila e há quem tenha rádios e outros artefatos de guerra, e entre todos podemos montar um museu”, disse Escalante, de 45 anos.
Os moradores estão se organizando para fornecer serviços aos turistas, e já há grupos trabalhando em alimentação, artesanato e outras atividades vinculadas à nova realidade. O trabalho é escasso em El Paisnal, que tem 4.500 habitantes, onde a maioria se dedica à agricultura e até agora havia poucas oportunidades de trabalho em outros setores.
A rota é completada com um componente de ecoturismo, com visita ao monte El Chino, a sete quilômetros de El Paisnal, e a Conacastera, uma praia na margem do rio Lempa. Também se contempla visitas à Cooperativa San Carlos, que está se adequando para receber e hospedar turistas que quiserem conhecer de perto os processos de produção agrícola local.
Outras regiões do país desenvolvem há vários anos projetos turísticos vinculados ao conflito. O povoado de Perkín, no norte do departamento de Morazán, é o mais conhecido por esses projetos. Ali há um museu onde se pode conhecer o processo da guerra civil, com fuzis, peças de artilharia e até helicópteros derrubados pela guerrilha.
Neste país, o menor da América Central, com 6,7 milhões de habitantes, o Ministério do Turismo informou que a entrada de divisas pelo setor chegou a US$ 650 milhões no primeiro semestre de 2014, uma alta de 33,3% em relação ao mesmo período do ano anterior. Envolverde/IPS