Conheça o dia a dia de combatentes da Birmânia, onde se trava o mais longo conflito armado em curso no mundo.

Monges e monjas budistas em marcha pacífica nas ruas de Mianmar.

Era uma vez um país. Lá ninguém se reunia com mais de quatro amigos ao mesmo tempo. As universidades ficavam em lugares inóspitos. Templos e monastério eram vigiados pelo Exército. Aliás, era esse mesmo Exército que tomava conta do país. Qualquer um poderia ser levado para a prisão, sem motivo ou sem mandado. As únicas notícias existentes eram aquelas divulgadas pelo governo. As palavras de ordem eram as armas e a democracia, um conceito trazido por estrangeiros, que ninguém nunca entendeu o que era. Lá havia um general que lutou a vida toda pela libertação desse país. O filho desse general ainda luta; e seus filhos já estão se preparando para entrar na guerra. O nome desse país é Birmânia ou Mianmar.

Da colonização à dominação

A Birmânia não é nenhuma terra imaginária de Gabriel García Márquez. É um país no Sudeste asiático, um dos mais fechados da atualidade, e palco da mais longa guerra em curso do mundo. O filho do general também é um personagem real: chama-se Ner Dah Mya, e é filho do famoso general Bo Mya, que dedicou sua vida à luta pelo reconhecimento da minoria étnica chamada karen. “Aprendi muito com meu pai e ele se tornou meu herói, meu modelo”, explica Ner Dah, que hoje é coronel da Sexta Brigada do Exército do povo karen, o KNLA. O pai, antes de morrer, pediu que ele continuasse a luta pelo seu povo. “Ele disse que eu precisava terminar o que havia começado. A liberdade é importante para a nossa população, portanto é impossível fugir da luta. As pessoas precisam se sacrificar pela liberdade, ela não vem de graça”.

A história do país não é simples. Além de diversas minorias étnicas, há ainda facções religiosas e diferentes movimentos que lutam pela democracia. A Birmânia conquistou sua independência da Grã-Bretanha em 1948, e em 1962, por meio de um golpe, os militares tomaram o poder, mantendo-o até hoje. O país, que já foi considerado um dos mais ricos do Sudeste asiático, transformou-se em um dos mais pobres e miseráveis da região.

Os anos passaram e, em 1988, o Exército abriu fogo contra um protesto pacífico pró-democracia organizado por estudantes, matando cerca de três mil pessoas. No mesmo ano, um partido de oposição foi organizado, a Liga Nacional pela Democracia (NLD) e, em 1990, nas primeiras eleições “livres” em 30 anos, o NLD conquistou 392 dos 485 lugares no parlamento. O governo anulou as eleições e prendeu diversos membros do NLD.

Quase 20 anos depois, em 2007, impulsionado pelo aumento do preço da gasolina, outro enorme protesto eclodiu em diversas cidades do país. O mesmo grupo de estudantes de 1988 estava à frente da nova manifestação e contou com o apoio de milhares de monges budistas. Vestidos com mantas laranjas, os religiosos saíram às ruas convocando o povo, num protesto pacífico, pedindo por democracia. O episódio, que ficou conhecido como Revolução de Saffron, terminou em sangue, com a morte de centenas de monges e outros civis.

As imagens desse protesto atraíram a atenção da comunidade internacional, que passou a pressionar o governo a traçar um mapa para a democracia. Uma Constituição foi escrita, leis eleitorais estabelecidas e uma eleição realizada no final de 2010. Entretanto, a nomeação de alguns partidos democráticos para ocuparem poucos assentos do Parlamento não mudou em nada a situação do país. Os militares continuam a controlar a Birmânia, agora, de maneira “legítima”.

Nessa guerra, que já dura mais de 60 anos, quem mais sofre são as minorias étnicas, que compõem 35% do país (de um total de 55 milhões de habitantes). Dezenas de milhares de grupos – como shan, karenni, karen e mo – vivem em regiões fronteiriças, onde os militares matam, estupram, espancam e detêm civis arbitrariamente. Mais de 20 exércitos de diferentes grupos étnicos foram criados para tentar lutar contra essas atrocidades.

Os karen, um dos maiores grupos, que representam 7% da população, criaram, em 1948, o Exército de Libertação Nacional dos Karen (KNLA). Isto totaliza 62 anos de luta, a mais longa guerra atualmente em curso no mundo. Embora alguns grupos tenham concordado com o cessar-fogo, a situação do KNLA só piorou nos últimos anos. Relatórios sugerem que o Exército birmanês queimou mais de 3.200 vilas dos karen nas últimas décadas, além de terem sido acusados de limpeza étnica e genocídio.

David Thackrabaw, vice-presidente da União Nacional dos Karen, explica como os grupos étnicos armados vêm perdendo território gradualmente para os militares birmaneses nas últimas décadas. “Os exércitos das minorias étnicas têm pessoas e armamento limitados. Estão lutando uma guerra injusta contra um exército que pretende expandir para 500 mil homens e que recebe armas sofisticadas de países como China, Rússia, Ucrânia e Índia.” Sem nenhum apoio, é natural que os pequenos exércitos estejam sendo reduzidos cada vez mais.

Entretanto, Thackrabaw enfatiza que é preciso encontrar um meio pacífico de pôr fim à guerra. “Nós não queremos mais lutar. Queremos dialogar com o governo, mas temos que ser levados a sério. Nossas exigências devem ser respeitadas”, explica.

O personagem do início da nossa história, Ner Dah Mya, e seu irmão, entraram na guerra cedo. Ainda crianças, frequentaram a escola dos karen, onde toda sexta-feira os líderes do KNLA apareciam e contavam sobre a luta. “Eles nos diziam que sem liberdade, sem o reconhecimento do nosso povo, nós não seríamos nada. Portanto, desde criança essa ideia grudou na nossa mente.” Sua história é apenas uma entre centenas de outras que se repetem há décadas. Diversas gerações do povo karen sacrificam suas vidas pela guerra.

Ele relembra sua primeira batalha aos 15 anos, quando as tropas estavam atacando o exército birmanês e ele participou da operação. “Nós, os estudantes, estávamos muito felizes de estar lá, de poder lutar pelo nosso povo. A inocência foi embora, naturalmente, afinal não existe perdão na zona de guerra. Ou você mata ou é morto”, relembra.

Ner Dah diz que quando capturam um soldado do governo, não o torturam, apenas perguntam o que eles fazem. “A maioria dos soldados não quer lutar, portanto nós os encaminhamos para o Alto Comissariado para Refugiados das Nações Unidas (Acnur) ou para conhecidos na Tailândia que podem lhes oferecer trabalho.” Segundo Ner Dah, a força da atual guerrilha está concentrada na guerra psicológica. “Eles são como patos que não sabem qual é a profundidade do lago. Estamos lutando há 62 anos e sobrevivendo sempre, mantendo nosso território. Nós conhecemos a selva, as estradas e eles sabem disso, sabem que podem ser atacados a qualquer momento.”

Apesar de afirmar que continuará lutando até conseguir a liberdade do seu povo, é possível sentir um tom de cansaço na sua voz. “É uma luta antiga, esse será o 63º ano. Além disso, a situação na fronteira está ficando cada vez mais complicada, principalmente após as eleições de 2010, quando cerca de 20 mil karen fugiram de suas vilas para a Tailândia, após as ofensivas do Exército”, desabafa.

Guerra e religião

Esta luta envolve também diferentes religiões, como os monges mencionados acima, que em 2007 se tornaram a voz do povo. Além destes monges, que seguem uma linha de protesto pacífico, existem também monges que se juntaram à luta armada, como Saw Wizana, mais conhecido como o monge “Rambo”.

“Rambo” deixou o monastério para lutar ao lado dos rebeldes quando era mais jovem e teve um papel importantíssimo na reconciliação entre os grupos cristãos e budistas nos últimos anos. “Sei que monges budistas não devem ser violentos ou políticos, é verdade. Entretanto, vi meu povo sofrer. Quando tanta injustiça ocorre com pessoas inocentes, alguém precisa fazer alguma coisa”, justifica.

Em 1994, alguns membros budistas do KNLA se separaram do movimento para criar seu próprio grupo, o Exército Democrático Budista dos Karen (DKBA). Ainda assim, mesmo dentro do DKBA há diferentes facções. A quinta brigada, por exemplo, se juntou novamente ao KNLA, recentemente.

Andrew Drummond, correspondente inglês que esteve entre os karen em 1987, comenta: “Não me lembro de os karen serem evasivos em relação a nada, mas lembro bem que eles eram uma grande mistura de religiões. Eram budistas, católicos, batistas e, em um dos campos, havia uma unidade da frente libertadora Arakan, liderada por muçulmanos.” Ner Dah Mya também confessa seu lado religioso. “Sempre rezo antes de entrar numa batalha, decorei o Salmo 23. Percebi que sou protegido por Deus. Já estive em muitas batalhas e nunca fui ferido.”

Um dos momentos que o mundo parou para prestar atenção ao que se passava na Birmânia foi em novembro do ano passado, quando a ativista e vencedora do prêmio Nobel da Paz, Daw Aung San Suu Kyi, foi libertada da sua prisão domiciliar, onde se encontrava desde 1989.  Daw Aung era secretária-geral do NLD quando este concorreu às eleições em 1990. O governo, com medo da sua popularidade e liderança, a prendeu em casa, impedindo qualquer contato com o partido.

Apesar de sua libertação ter gerado uma série de manchetes positivas nos jornais ao redor do mundo, cerca de 2.500 prisioneiros políticos ainda continuam presos no país. De acordo com o relatório de 2010 da organização Anistia Internacional, “as condições dos prisioneiros continuam a ser extremamente precárias, incluindo comida e água inadequadas e a falta de assistência médica. Frequentemente as autoridades mantêm os prisioneiros em solitárias”.

Thiha Yarzar, 38 anos, ex-prisioneiro político, passou 18 anos em diferentes prisões na Birmânia. “Alguns dias após ser interrogado, quando pedi um copo d’água, me levaram a um banheiro e me ofereceram a água da privada”, conta. Após ter sido libertado, Thiha fez o que a maioria dos prisioneiros políticos faz – fugiu do país para a Tailândia, onde ainda procura uma vida estável. “Venho solicitando asilo político há mais de três anos, entretanto o Acnur e as autoridades tailandesas não colaboram. Está ficando cada vez mais complicado viver ilegalmente na Tailândia.” Se pegos, presos políticos como Thiha são deportados de volta à Birmânia, onde é grande a possibilidade de serem executados.

Sem nenhuma liberdade de imprensa, é muito difícil que o resto do mundo saiba o que está acontecendo na Birmânia. Para Daniel Pederson, jornalista australiano que trabalha como relações públicas para os karen, simplesmente não há interesse da mídia pela Birmânia. “Há em média uma boa história publicada sobre a Birmânia a cada dois anos. A mídia não tem dado cobertura a essa história da mesma maneira que a outras guerras, pois não há soldados estrangeiros envolvidos, portanto o nível de interesse é muito baixo.”

O que se sabe até agora é que esta guerra não tem previsão para acabar. Entretanto, combatentes como Ner Dah ainda têm sonhos. “Vou tirar férias assim que essa guerra acabar. Adoro voar e quero ter minha própria base aérea perto de alguma cachoeira. Quero voar com meu avião e ver a selva da Birmânia lá de cima. Quero me sentar com meus amigos e fazer um churrasco enquanto apreciamos o pôr-do-sol. Eu espero muito por esse dia. Tomara que não demore muito para chegar.”

* Publicado originalmente na Revista Fórum, edição 97, de abril de 2011.