Internacional

Fazer as malas para ganhar respeito como policiais na Argentina

As mulheres já são uma presença comum nas atuações das diferentes forças policiais da Argentina, incluídas as de controle de manifestações, como esta linha de contenção de agentes femininas da Polícia da Província de Buenos Aires, durante uma concentração nas ruas de um subúrbio da capital. Foto: Fabiana Frayssinet/IPS
As mulheres já são uma presença comum nas atuações das diferentes forças policiais da Argentina, incluídas as de controle de manifestações, como esta linha de contenção de agentes femininas da Polícia da Província de Buenos Aires, durante uma concentração nas ruas de um subúrbio da capital. Foto: Fabiana Frayssinet/IPS

 

Buenos Aires, Argentina, 1/4/2015 – Quando ingressaram em suas forças de segurança, Marina Faustino e Silvia Miers eram minoria e, para se imporem entre os homens, era preciso “fazer a mala”. Agora, graças a uma política de igualdade de gênero, há cada vez mais mulheres policiais na Argentina, combatendo preconceitos sexistas, além do crime.

A vocação de Faustino, que aos 39 anos é oficial principal (cargo abaixo de subcomissário) da Polícia Federal Argentina (PFA), começou quando era adolescente, por admiração ao seu pai, então policial dessa força. “Eu via meu pai desfilar e queria ser como ele. Mas ele me dizia: a polícia não é uma passarela”, contou à IPS esta policial que na adolescência foi modelo.

Faustino conseguiu entrar na PFA, contra a resistência de seu pai. “Dizia que era uma instituição machista, que eu ia sofrer, que a mulher não era considerada”, recordou. E, de fato, sofrimento não faltou desde que aos 20 anos começou os dois anos de instrução.

“Naquela época, as mulheres policiais mais antigas usavam cabelo curto. Tinha que se parecer com um homem, e eu dizia: não me vejo assim, sou feminina, que respeitem minha identidade, minha condição”, acrescentou Faustino, ao explicar porque nunca cortou seus cabelos ruivos.

Passaram muitos anos para conseguir esse respeito. “Na polícia existia um profundo senso de misoginia”, pontuou à IPS Natalia Federman, advogada especialista em direitos humanos. Ela foi, entre 2010 e dezembro de 2014, a primeira diretora nacional de Direitos Humanos dentro do Ministério de Segurança, e desenvolveu sua estratégia de gênero.

O processo começou com a designação pela presidente Cristina Fernández de uma primeira mulher como ministra dessa pasta, Nilda Garré (2010-2013), que proibiu restrições ou teto no acesso feminino nas quatro forças policiais nacionais e suas escolas, vinculadas ao Ministério.

Além disso, nesse período também foi determinada a aceitação de efetivos e oficiais travestis, transexuais e transgêneros. Garré também ordenou respeito à identidade de gênero em todas as instâncias e atuações das quatro polícias, como parte do combate a condutas homofóbicas e transfóbicas.

Federman instituiu a estratégia Construindo Instituições Sensíveis ao Gênero, que regulamentou assuntos como licença maternidade e amamentação e foi considerada em 2014 como uma das melhores em sua área pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). “Buscamos formar uma cultura institucional democrática, que promoverá a igualdade de gênero e os direitos humanos na área de segurança. Simultaneamente, colocou-se a violência de gênero como um tema central da segurança cidadã”, explicou.

A inspetora da Polícia de Segurança Aeroportuária, Silvia Miers (esquerda), e Marina Faustino, oficial principal da Polícia Federal Argentina, contaram à IPS suas experiências nas forças de segurança, antes e depois da aplicação de uma estratégia sensível à igualdade de gênero. Foto: Fabiana Frayssinet/IPS
A inspetora da Polícia de Segurança Aeroportuária, Silvia Miers (esquerda), e Marina Faustino, oficial principal da Polícia Federal Argentina, contaram à IPS suas experiências nas forças de segurança, antes e depois da aplicação de uma estratégia sensível à igualdade de gênero. Foto: Fabiana Frayssinet/IPS

 

Em 2011, sua equipe fez uma pesquisa interna para detectar as “limitações simbólicas ou regulamentares” que excluíam as mulheres de determinados cargos. O estudo mostrou que “37,7% das mulheres e 55,1% dos homens opinavam que os homens estão mais capacitados para as tarefas de prevenção, contenção e segurança em manifestações”, citou Federman.

Miers, que saiu da Força Aérea para a Polícia de Segurança Aeroportuária (PSA), enfrentou esses estereótipos. Hoje a PSA é a força nacional com maior porcentagem de mulheres, 38% do total de efetivos, seguida da PFA com 23% de mulheres oficiais ou suboficiais, a Gendarmaria Nacional com 18%, e a da Prefeitura com 9%.

Mas a situação era muito diferente quando Miers começou sua carreira e como responsável por uma maioria de homens teve que mostrar “extrema seriedade” e “dureza” para ser respeitada. “Todos lembram de mim como a pior de todas”, recordou à IPS a agora inspetora da PSA, com 80 pessoas sob sua direção. “Não há outra alternativa, se uma dava um pouquinho de confiança ou simpatia, era considerada a que andava com todos, ou a que chegou a determinado espaço profissional porque saiu com o chefe”, acrescentou esta oficial de 38 anos.

Faustino também sofreu quando muito jovem teve como subalternos em uma delegacia homens que por suas idades “poderiam ser meus pais”, ou jovens que brincavam dizendo “aí vem a ruiva”. Ressaltou que precisou “analisar o que fazer porque não podia simplesmente dizer ‘eu sou a chefe, eu decido’. Precisava aprender com sua experiência para não me colocar contra eles”.

A pesquisa revelou situações mais graves, como a de 13,8% que sofreram assédio sexual, muitas vezes por parte de superiores masculinos, e que só 8% das afetadas haviam denunciado o caso. Agora existem Centros de Atenção de Gênero na polícia que recebem denúncias internas de assédio, discriminação sexual e violência no trabalho, bem como requerimentos para conciliar família e profissão.

Miers, com dois filhos e em processo de divórcio, teve esse problema ao aceitar um cargo importante. Um “homem não o faria com sua esposa”, mas ela consultou seu marido por medo de que, “quando chegasse em casa, o encontrasse de cara fechada”. “Antes, com horário de 8h às 14h, fazia a tarefa com meus filhos, cozinhava. Disse ao meu marido: ‘nossa vida não será a mesma. A partir de agora irei pela manhã ao aeroporto, mas não sei que horas voltarei, peço que me entenda, que não fique com raiva e nem com ciúmes’, porque eu estava cercada de homens”, acrescentou Miers.

Faustino destacou que enquanto em 2010 havia só uma mulher comissária-inspetora, atualmente é uma mulher, Mabel Franco, a comissária-geral da PFA. “Não existe perspectiva de gênero sem mulheres que a levem adiante”, ressaltou a atual ministra de Segurança, Cecilia Rodríguez.

Já “não há mais teto” para promoções, comemorou Miers, esclarecendo que “o respeito se ganha com base no esforço e às vezes redobrando o de um homem. É preciso estudar muito, se capacitar, se de verdade deseja chegar a um espaço de direção”. Segundo Federman, faltam várias promoções para que as mulheres alcancem postos mais altos, para avaliar se conseguiram “uma real igualdade”.

Enquanto isso, é preciso combater estereótipos como o de que os atributos indispensáveis para ser um bom policial são aqueles vinculados “a uma masculinidade hegemônica” (liderança, força física, valentia), afirmou Federman. Esses preconceitos relegam outros atributos, “tão ou mais necessários para se ter um bom serviço policial, como capacidade de empatia, facilidade para o diálogo, a negociação e para incentivar o pessoal, muitos dos quais historicamente são atribuídos às mulheres”.

Valores que, segundo Faustino, lhe serviram, por exemplo, para controlar nos estádios as “barras bravas” (torcida violenta) da popular equipe de futebol Boca Juniors, tarefa que exerceu por 12 anos. “Podemos fazer um trabalho policial e tático, e sorrir, oferecer um copo de água, falar, e te respeitam”, afirmou. Ela os tratou como “cavalheiros”, aprendeu “seu código” e conseguiu.

Mas também atravessou situações desagradáveis. Faustino contou que, certa vez, um torcedor “me disse uma guarangada (grosseria), e respondi com o que mais lhe doía: impedi-lo de entrar no estádio. “Não digo as coisas aos gritos e obtenho mais resultados”, acrescentou. Agora estuda psicologia para apoiar-se na mediação de conflitos, como aqueles vinculados à violência de gênero. “Às vezes as mulheres funcionam como mediadoras, evitamos o choque. Ouvimos. A cortesia não impede o valente”, destacou. Envolverde/IPS