Multiplicadora de "zezinhos"

Indignada com as condições de vida que crianças e adolescentes eram obrigados a levar na comunidade de Capão Redondo, periferia de São Paulo, Dagmar Rivieri Garroux decidiu transformar a própria casa em abrigo para aqueles que estavam jurados de morte. Com o tempo, a casa da Tia Dag se transformou na Casa do Zezinho, onde hoje 1.200 “zezinhos” aprendem que existem alternativas para a violência e que todos os sonhos podem virar realidade.

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"Eu sou uma maluca, um ser humano que, como todos os outros, mora na mesma casa, que é o planeta, que acha que somos todos parentes. Então não é sobre 'fazer parte', é sobre 'ser parte'".
Dos cem metros quadrados da antiga casa, o sonho de Tia Dag se expandiu para mais de quatro mil metros quadrados que abrigam paredes coloridas, piscina, quadras de esportes, biblioteca e salas de aula. Lá dentro, os zezinhos desfrutam de atividades como oficinas de arte, gastronomia e informática, reforço escolar, inglês, esportes, vídeo, foto e debates sobre sexualidade e  mercado de trabalho.

Dos mais de dez mil que já passaram por lá, muitos abandonaram os crimes e as drogas e hoje são professores, engenheiros, dentistas, donos dos seus próprios negócios e, acima de tudo, discípulos de uma mulher inspiradora, que defende a educação como única saída para as mudanças que o mundo precisa e que acredita que, no fundo, todo mundo é Deus.

Portal EcoDesenvolvimento.org: Como surgiu a Casa do Zezinho?

Tia Dag: A ideia surgiu na minha casa, nos anos 1960, quando eu dava aula para crianças exiladas do Chile, Argentina, a América do Sul toda que estava em ditadura, filhos de brasileiros, além de libaneses, pessoas de Israel, quase uma ONU. Só que eu pegava esse pessoal, levava pra favela e mostrava que esse era um trauma momentâneo, e que aquelas pessoas ali estavam vivendo um trauma há muitos anos, a cultura tinha sido exterminada assim como toda a identidade dos negros e dos índios.

Lá por volta de 1972, a favela começou a ter televisão, compravam à prestação, e aí todo mundo queria participar daquilo, queria ter o tênis, a roupa, e as crianças e jovens começaram a roubar. Aí surgiram os grupos de extermínio, como existem até hoje. O interessante é que eles colocavam no poste quem ia morrer se não saísse dali, e eram crianças de 11, 12 anos. Então eu comecei a procurar lugares para esconder eles, porque ninguém queria fazer isso, tinham medo. Comecei a levar todos pra minha casa. Depois de um tempo, meu marido e eu vimos que precisávamos comprar uma casa maior. Nos mudamos para essa casa em 1986, e foi quando eu falei pro meu marido “vou trabalhar para quem precisa”. Me juntei com algumas amigas e fundamos a Casa do Zezinho.

Por que “Casa do Zezinho”?

Por causa do poema de Carlos Drummond de Andrade, “E agora, José?”. O brasileiro tem manias, e uma delas é a do “Zé”, “Zé mané”, “Zé ruela”. Aí trocamos a pergunta por uma exclamação, “E agora, José!”. Então ser um Zezinho hoje aqui no Capão é ter uma dignidade, uma filosofia, mudou sabe?

A organização é uma “casa”, e não “escola”. Por quê?

Porque a casa já tem um conceito de aconchego, de encontro, de ser o lugar onde é o ninho. Eu lembro que quando abri com o nome “casa” muita gente foi contra. Mas hoje a gente tem a Fundação Casa.

Quais foram e quais são os maiores desafios de uma organização como a Casa do Zezinho hoje no país?

Os desafios sempre são os parceiros, ou seja, manter a Casa do Zezinho, que tem um custo de R$ 4 milhões por ano. Quem vem aqui e conhece acha que a Casa do Zezinho não precisa de ajuda, que é rica, mas não é, ela tem uma boa gestão, uma estrutura já consolidada.

Como foi a sua infância e adolescência? A senhora foi estagiária no Juizado de Menores e denunciava os casos de tortura na época da ditadura. Já era uma pessoa revoltada contra as injustiças desde pequena?

Era, mas na minha casa já era assim, meus pais eram assim. Eu nasci em um bairro muito rico de São Paulo, meu pai era engenheiro, minha mãe empresária, mas sempre olharam o outro. Nunca tinha discussão na minha casa, as pessoas que trabalhavam lá logo recebiam formação e logo não eram mais empregadas domésticas, lá em casa isso era muito normal. Na infância eu sempre era líder na escola, não gostava de regras, alias ainda não gosto (risos), era bem antenada.

Em sua opinião, qual o maior desafio dessas crianças e adolescentes que vivem em periferias do país hoje?

São as necessidades básicas, alimentação, moradia, saúde, escola decente, a falta do governo, do setor público, falta de espaço de lazer, de cultura, esta é a maior dificuldade. Porque a maioria do Brasil é a periferia, eles não são a exclusão, são a maioria. A sociedade precisa atravessar as pontes. No Rio e São Paulo, parece que existem Muros de Berlim, que separam ricos de pobres, e isto precisa acabar. A sociedade precisa comparecer para acabar com a desigualdade social, é preciso pensar em formação, desenvolvimento humano, educação de verdade. O último dado do MEC mostrou que apenas 27% dos brasileiros são alfabetizados, os 73% são analfabetos funcionais. Que país é esse? Será que ele está mesmo preocupado com uma educação democrática?

Hoje a Casa do Zezinho atende a 1.200 crianças e jovens em situação de risco da periferia de São Paulo.

A senhora é discípula de Paulo Freire. Qual a importância da educação na transformação do Brasil?

É a única coisa que pode transformar o nosso país. E quando eu falo em educação, eu falo em formação e desenvolvimento humano, não apenas em pastas de conteúdo. Estamos no Século 21, os jovens e as crianças já dominam nas lan houses, e as escolas não fazem nada, a aula de informática é pro menino brincar na internet. É preciso uma orientação pedagógica para esse jovem e essa criança. E a diferença social tem um impacto enorme. Mas aqui na Casa do Zezinho não existe essa diferença, o que está acontecendo no Século 21, está acontecendo aqui. Esta é a diferença da Pedagogia do Arco-Íris, que eu criei junto com a vivência e os saberes do zezinhos. Porque é o que faz a diferença, ninguém pergunta pros jovens o que eles querem.

A senhora assistiu ao vídeo da professora Amanda Gurgel? O que achou?

Vi, achei fantástico, sensacional! E é verdade. Agora querem fazer um tipo de treinamento, capacitação, mas treinamento é pra bicho, não pra gente. Estão querendo capacitar alguém em seis meses que não tem nenhuma base, que não está alfabetizado, que não tem conhecimento na área de matemática, de ciências sociais, de pesquisa. É muito tempo de atraso. Eu pensava que quando a ditadura acabasse, isso tudo também ia acabar, mas não acabou, ficou tudo igual. Mas claro que vai ficar, afinal o professor está despreparado, desmotivado, a escola não motiva ninguém a ir.

A educação em uma comunidade cheia de problemas, como a do Capão Redondo, é muito mais complexa que em uma escola particular, por exemplo. Nesse contexto, o que é educar?

Educar não é ensinar, é muito diferente, engloba muito mais. E hoje em dia tem que se pensar em educação, trabalhar com transversalidade, onde tudo se conecta com tudo, matemática pode se conectar com história, que pode se conectar com gastronomia, que pode linkar com multimídia, website, webdesign, e a molecada quer isso.

O que é a Pedagogia do Arco-Íris, criada por você?

Ela é baseada nos cinco sentidos, o professor não é o show da sala, e sim os zezinhos. Então, tem muita escuta, a gente traz o que está acontecendo no mundo, estimula as discussões, e nesse momento é que ele vai se educando, se desenvolvendo e tendo o seu futuro. O arco-íris é ponte e ao mesmo tempo é flexibilidade, e as cores mostram a diversidade de seres humanos, de culturas, de escolhas, etc.

Li no seu blog um texto sobre o Projeto Makaya, que vai levar consciência ecológica para as crianças e jovens. Como fazer com que essas pessoas que precisam se preocupar em sobreviver com um mínimo de dignidade parem e pensem em um problema que aparentemente é tão distante deles?

Eu não posso falar em “educação ambiental”, senão vou ter que falar em “educação musical”, “educação matemática”, e educação é tudo isso. Eles vivem na natureza, aqui tem estufa, tem a ecocabana, eles convivem e tratam tudo isso de forma muito próxima.

Como é a vida de quem mora dentro da favela?

Terrível, terrível. É uma renda muito baixa, em média R$ 100,00 por pessoa, tem aquela coisa da favela, onde ninguém tem privacidade, é esgoto a céu aberto, falta de espaço, 20 pessoas morando em 12 metros quadrados, é um absurdo, mas elas têm que sobreviver, então sobrevivem. Existe uma falta de olhar para isso. O governo está totalmente fora. Para se ter uma noção, aqui tem um milhão e meio de habitantes e sabe quantos cinemas? Dois. É inacreditável.

Agora, o povo da periferia está se mexendo. O pessoal não fica mais esperando e nem chorando, eles partem pra ação. É fantástico isso. Então, tem a turma dos poetas, que faz recital, tem o cinema na laje toda segunda-feita, em cima de um bar, todo mundo se fala, troca informação, que é pra todo mundo poder participar de tudo. É a comunidade se engajando, contando com ela mesma e reivindicando.

A classe C está crescendo muito no país, o PIB do Brasil está crescendo. Esse impacto está chegando nas periferias? A vida do povo está melhorando?

Sabe em que lugar do mundo a educação do Brasil está? No 53º lugar. Sabe quem está atrás da gente? A Nigéria. Então eu posso dizer que, com relação à educação, não está chegando. Estamos muito aquém de qualquer um. O Chile está na frente, o Uruguai, Paraguai, Colômbia. Isso é um absurdo.

Qual foi o maior caso de vitória de um zezinho?

São muitos. Nesses 17 anos, os casos de perda pro tráfico e coisas assim foram muito poucos. Então cada um que abre o seu negócio próprio aqui na comunidade, ou busca o desenvolvimento local, pra mim é um caso de sucesso. Tem um que abriu uma agência de turismo, outro que abriu uma loja, mas eu não posso falar “estsa é uma vitória” porque todos são. E depois eles sempre voltam, pra você ter uma ideia, eu tenho 102 funcionários aqui e 60% são zezinhos. Eu fico cada dia mais fora, dando palestras e tal, mas a pedagogia já está instalada, eles já foram formados e estão passando pra outros. Não é mais “o sonho da Tia Dag”.

Qual ou quem é seu maior orgulho?

Não sei… Na verdade eu sou mais uma pessoa indignada (risos). Eu não admito um país maravilhoso como o Brasil tendo como o maior problema essa diferença social, que é fácil de resolver, é só parar um pouco essa falta de olhar do governo, essa corrupção. É só diminuir esse abismo entre as classes. Vai dizer que a classe C melhorou só porque agora pode comprar com um carnê nas Casas Bahia? E a casa? E a saúde? E o esgoto? Tem muita coisa, e não é só em São Paulo.

Você hoje mora no Capão Redondo, um bairro cercado por favelas e com altos índices de violência, assiste a todo tipo de barbárie, seu pai morreu assassinado por um dos “zezinhos”. Tem vontade de sair daí?

Não. Eu gosto disso. Meu pai morreu assassinado, mas morreu em pé, porque estava defendendo família e não ia deixa o cara entrar. E eu sou igual ao meu pai. Hoje também eu saio muito, vou aplicar o Arco-Íris em outros Estados, escolas, ONGs, é a pedagogia sendo multiplicada, e isto é sensacional, é o meu maior prazer.

O que te motiva a seguir nessa luta?

Eu sou uma maluca, um ser humano que, como todos os outros, mora na mesma casa, que é o planeta, que acha que somos todos parentes. Então não é sobre “fazer parte”, é sobre “ser parte”. É isto que me leva.

O que a sociedade pode fazer?

O papel da sociedade é começar em casa. É ensinar aos filhos a não ter preconceito, é não ter uma empregada analfabeta em casa, é dar “bom dia” ao porteiro, estimular as empresas a darem cursos, fazerem um plano de carreira, enfim, é educar. É isso que a sociedade deve fazer, perder o medo e educar.

A senhora já disse que não gosta da palavra “caridade”. Por quê?

De-tes-to (risos). Acho que todo mundo pode fazer muita coisa pra mudar o mundo, acho que todo mundo é Deus. Todo mundo tem a capacidade de mudança, de mudar. O que você tem? Tem saber, conhecimento? Então isto pode ser multiplicado, triplicado. Caridade já foi, isso era na Idade Média, e estamos no Século 21, todo mundo conectado. Caridade é eu te dar uma cesta básica e tchau. Mas humanidade é eu te dar uma cesta básica e falar: “faz assim, pra você não precisar mais dessa cesta básica, vamos lá…”, é abrir o caminho para aquela pessoa, informar onde ela pode estudar, como buscar melhores condições de saúde, o que ela pode fazer pra casa dela ficar mais bonita. É a caridade mais a educação.

Vi que a senhora tem muitos sonhos. Quais são?

Nossa, tem muitos. Eu quero abrir um núcleo para crianças e menores de idade que estão drogadas, comprar uma casa para ter música aqui a semana inteira, quero que todos os zezinhos criem em sala de aula com um tablet, esse é o sonho mais urgente (risos), ainda vou pra África levar essa pedagogia, então é assim, eu estou sempre sonhando.

* Publicado originalmente no site EcoD.

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