Nos anos 1990, a cada dez brasileiros, quatro eram miseráveis. Hoje a proporção é de um para dez. O ganho é indiscutível. Mas o desafio ficou maior: erradicar a miséria pressupõe atingir a bastilha da exclusão, que no caso do Brasil tem uma intensidade rural (25,5%) cinco vezes superior à urbana (5,4%).

Crises funcionam como uma espécie de tomografia na vida dos povos e das nações. Nos anos 1980, por exemplo, o fim do ciclo de alta liquidez escancarou a fragilidade de um modelo de crescimento adotado por inúmeros países da América Latina e Caribe ancorado em endividamento externo. Nos anos 1990, a adesão ao cânone dos mercados autorreguláveis expôs a economia a sucessivos episódios de volatilidade financeira que desmentiram a existência de contrapesos intrínsecos ao vale tudo do laissez-faire. O custo social foi avassalador.

A crise mundial de 2007-2008, por sua vez, evidenciou a eficácia de uma ferramenta rebaixada nos anos 1990: as políticas de combate à fome e à pobreza, que se revelaram um importante amortecedor regional para os solavancos dos mercados globalizados.

O PIB regional per capita recuou 3% em média em 2009 e o contingente de pobres e miseráveis cresceu em cerca de nove milhões de pessoas. No entanto, ao contrário do que ocorreu na década de 1990, quando 31 milhões ingressaram na miséria, desta vez o patrimônio regional de avanços acumulados desde 2002 não se destroçou.

Abriu-se assim um espaço de legitimidade para a discussão de novas famílias de políticas sociais, desta vez voltadas à erradicação da pobreza extrema.

No Brasil, a intenção é aprimorar o foco das ações de transferência de renda, associadas à universalização de serviços essenciais e incentivos à emancipação produtiva. Espera-se assim alçar da exclusão 16,2 milhões de brasileiros (8,5% da população) que vivem com menos de R$ 70,00 por mês.

A morfologia da exclusão nos últimos anos indica que o êxito da empreitada brasileira – ou regional – pressupõe, entre outros requisitos, uma extrema habilidade para associar o combate à miséria ao aperfeiçoamento de políticas voltadas para o desenvolvimento da pequena produção agrícola. Vejamos.

A emancipação produtiva de parte dessa população requer habilidosa sofisticação das políticas públicas.

Apenas 15,6% da população brasileira vive no campo. É aí, em contrapartida, que se concentram 46% dos homens e mulheres enredados na pobreza extrema – 7,5 milhões de pessoas, ou 25,5% do universo rural. As cidades, que abrigam 84,4% dos brasileiros, reúnem 53,3% dos miseráveis – 8,6 milhões de pessoas, ou 5,4% do mundo urbano.

Portanto, de cada quatro moradores do campo um vive em condições de pobreza extrema e esse dado ainda envolve certa subestimação. As pequenas cidades, que hoje abrigam algo como 11% da população brasileira, constituem na verdade uma extensão inseparável do campo em torno do qual gravitam. Um exemplo dessa aderência são os 1.113 Municípios do semiárido nordestino, listados como alvo prioritário da erradicação da miséria brasileira até 2014.

Nos anos 1990, a cada dez brasileiros, quatro eram miseráveis. Hoje a proporção é de um para dez. O ganho é indiscutível. Mas o desafio ficou maior: erradicar a miséria pressupõe atingir a bastilha da exclusão que, no caso do Brasil, tem uma intensidade rural (25,5%) cinco vezes superior à urbana (5,4%).

O cenário da América Latina e Caribe inclui relevo semelhante com escarpas mais íngremes. Cerca de 71 milhões de latino-americanos e caribenhos são miseráveis que representam 12,9% da população regional, distribuídos de forma igual entre o urbano e o rural: cerca de 35 milhões em cada setor. A exemplo do que ocorre no Brasil, porém, a indigência relativa na área rural, de 29,5%, é mais que três vezes superior a sua intensidade urbana (8,3%), conforme os dados da Cepal de 2008.

Estamos falando, portanto, de um núcleo duro que resistiu à ofensiva das políticas públicas acionadas na última década. Desde 2002, 41 milhões de pessoas deixaram a pobreza e 26 milhões escaparam do torniquete da miséria na América Latina e Caribe. Essa conquista percorreu trajetórias desiguais: declínios maiores de pobreza e miséria ocorreram na área urbana (menos 28% e menos 39%, respectivamente) em contraposição aos do campo (menos 16% e menos 22%).

Uma visão de grossas pinceladas poderia enxergar nesse movimento uma travessia da exclusão regional em que a pobreza instaura seu predomínio na margem urbana, enquanto a maior incidência da miséria se consolida no estuário rural e na órbita dos pequenos Municípios ao seu redor.

A superação da miséria absoluta é possível com a extensão dos programas de transferência de renda aos contingentes mais vulneráveis. Mas a emancipação produtiva de parte desses protagonistas requer habilidosa sofisticação das políticas públicas. A boa notícia é que o núcleo duro rural inclui características encorajadoras: os excluídos têm um perfil produtivo, um ponto de partida a ser ativado. Os governos, por sua vez, têm experiências bem-sucedidas a seguir. Entre elas, a brasileira, a exemplo do crédito do Pronaf, das demandas cativas que incluem o suprimento de 30% da merenda escolar e as Compras de Alimentos da Agricultura Familiar, implantadas nos últimos anos. Não por acaso, a pobreza extrema no campo brasileiro caiu de 25% para 14% entre 2002 e 2010, e a renda do agricultor familiar cresceu 33%, três vezes mais que a média urbana, nesse mesmo período.

* José Graziano da Silva é ex-ministro da Segurança Alimentar e Luta Contra a Fome do Brasil, eleito esta semana diretor da FAO (www.grazianodasilva.org).

** Publicado originalmente no jornal Valor e retirado do site Agência Carta Maior.