TERRAMÉRICA - Como reassentar comunidades pobres

O reassentamento dos moradores de um bairro extremamente povoado de Porto Alegre colocou à prova a forma como as autoridades brasileiras desalojam comunidades para no lugar erguer grandes obras, como, por exemplo, as relacionadas à Copa do Mundo de 2014.

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José Luiz Ferreira onde era sua casa na velha Vila Chocolatão.
Porto Alegre, Brasil, 4 de julho de 2011 (Terramérica).- José Luiz Ferreira, de 60 anos, nasceu pobre e assim continua, mas conseguiu estudar. Seu Luiz, como é chamado na nova Vila Chocolatão, bairro onde mora em Porto Alegre, sobrevive dando aula de inglês e vê águias onde todos veem galinhas. “Um dia um cientista viajando vê em um galinheiro um monte de filhotes de águia buscando milho como as galinhas. Então, pergunta ao proprietário: essas não são galinhas, são águias. O dono responde: ‘Não. São galinhas. Quer ver?’ Ao abrir o galinheiro, as aves continuam bicando o solo, mas o cientista rouba uma. Depois de vários meses, a leva a um lugar bem alto, a solta e a galinha voa, se transformando em águia”, contou seu Luiz.

É uma versão livre de um conto do livro “A Águia e a Galinha”, do teólogo e escritor brasileiro Leonardo Boff, representante da Teologia da Libertação. “Aqui (na comunidade), todo mundo é águia há anos, mas somos tratados como galinhas. E se ninguém disser nada, continuarão agindo como galinhas”, afirmou. O desalojamento de Vila Chocolatão, de 732 habitantes, virou um marco na cidade: pela primeira vez um reassentamento foi acompanhado por juristas e geógrafos que fizeram um laudo para prevenir e solucionar problemas, baseados no direito à moradia.

O resultado desse esforço levou à suspensão do reassentamento até que fosse assinado um Acordo de Compromisso com o Ministério Público Federal, que ocupará um prédio próprio no terreno onde antes ficava Chocolatão, propriedade do Tribunal Regional Federal (TRF). “Não é por terem moradia digna que terão trabalho, saúde e educação. Um princípio fundamental é que está proibido retroceder, pois onde estavam antes ganhavam seu sustento”, disse ao Terramérica o procurador regional dos Direitos dos Cidadãos do Ministério Público, Alexandre Gavronski.

A nova Vila Chocolatão fica longe do centro, tem menos lixo, as casas são feitas com material sólido, banheiros, eletricidade e água corrente. Garante emprego a 60 pessoas por turno em uma Central de Seleção de Resíduos doada por uma empresa privada, para atender a demanda de emprego da população, que antes sobrevivia da coleta de material reciclável. Seria perfeita, não fosse o fato de infringir a lei, que não só obriga a dar um teto aos desalojados, como também a possibilidade de reconstruírem suas vidas com trabalho, saúde, educação e um mínimo de conforto.

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José Luiz Ferreira na porta de sua nova casa na nova Vila Chocolatão.
A comunidade original esteve por 25 anos no terreno do TRF, uma área insalubre que pegou fogo mais de uma vez. Dois terços dos moradores tinham renda equivalente a um salário mínimo. “A nova Vila Chocolatão é infinitamente melhor”, afirmou ao Terramérica o diretor do Departamento Municipal de Habitação, Humberto Goulart, uma semana antes da mudança. “A creche (na época não concluída) é moderna, há lugar para todas as crianças nas escolas, os postos de saúde podem atender a demanda e o galpão para separação do lixo é o mais moderno do Brasil. Alguns reclamaram apenas para criar tensões”, acrescentou Humberto.

As críticas, feitas pela Associação de Geógrafos Brasileiros e pelo Serviço de Assistência Jurídica Universitária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, insistiram na pouca participação dada aos moradores no plano de reassentamento, contrariando o Estatuto da Cidade. Também alertaram que faltava moradia para todas as famílias, o que obrigou a Prefeitura a garantir o pagamento de um aluguel em outra região para uma parte dos desalojados.

As críticas também foram contra o galpão, sem capacidade para todos os que antes trabalhavam como catadores e recicladores, e, ainda, pelo deficiente censo das famílias, que acabaram colocadas em casas aptas para grupos pequenos de pessoas. “Não era o que eu esperava”, disse ao Terramérica uma semana após a mudança, em maio, Teresinha Margarete do Rosário, na Central de Seleção de Resíduos. Ela conseguiu vaga na escola mais próxima para apenas um de seus seis filhos.

No entanto, Antônio Lázaro da Silva de Oliveira, operário da construção civil, está satisfeito. “Aqui é outra vida. minhas três filhas estão estudando. Só que depois das 21 horas ninguém mais sai de casa. Vou conversar com as pessoas para melhorar a segurança do bairro”, contou ao Terramérica. Marta Suzana Pinheiro Siqueira e seu marido demoraram mais de um ano para construir a casa que precisavam na comunidade velha, mas não tiveram outra coisa a fazer, a não ser aceitar o desalojamento. Um mês depois da mudança, ainda esperam que as autoridades solucionem a falta de espaço para abrigar seus quatro filhos, de 11 a 17 anos, levando a família para um terceiro assentamento.

Embora o desalojamento de Chocolatão não esteja vinculado às obras relacionadas à Copa do Mundo de 2014, no Brasil de hoje todos os reassentamentos e reformas acabam confluindo nesse objetivo. “Tudo diz respeito à Copa, porque é a maneira de obter recursos”, disse ao Terramérica a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik, relatora especial da Organização das Nações Unidas sobre Direito a Moradia Adequada. Raquel recebeu denúncias de despejos forçados e de reassentamento de diferentes regiões que violam direitos dos cidadãos. Uma dessas queixas foi sobre Vila Chocolatão.

Em dezembro, ela se dirigiu ao governo brasileiro alertando para essas denúncias vinculadas à construção de infraestrutura para o Mundial. Diante da falta de resposta, tornou público o assunto por meio da imprensa. Em maio, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência, Maria do Rosário Nunes, respondeu a ela, por telefone, que o governo criara um grupo de trabalho integrado pela Secretaria e vários Ministérios para solicitar os planos de reassentamento às Prefeituras envolvidas em denúncias. No momento, esses planos estão sendo examinados e em seguida haverá visitas de autoridades federais a cada lugar, disse uma fonte da Secretaria. “Se forem reiteradas as violações, pode haver sanções”, alertou Raquel ao Terramérica.

Na semana passada, a Câmara Municipal da cidade do Rio de Janeiro aprovou a instalação de uma comissão investigadora das denúncias de violações de direitos humanos nas obras para a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos de 2016. Estas obras são um dos três grandes projetos nacionais que afetam moradores em situação precária no país. Os outros são o Programa de Aceleração do Crescimento e o plano Minha Casa, Minha Vida, afirmou a geógrafa Lucimar Siqueira. As soluções oferecidas dão teto e assistência aos desalojados, afirmou. Entretanto, não garantem que as águias possam voar.

* A autora é colaboradora da IPS.

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Site oficial de Leonardo Boff, em português, espanhol e inglês

Ministério Público Federal

Tribunal Regional Federal

Departamento Municipal de Habitação de Porto Alegre

Associação de Geógrafos Brasileiros

Serviço de Assistência Jurídica Universitária – Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Copa Mundial da FIFA – Brasil 2014, em português, espanhol, inglês, francês e alemão

Artigo produzido para o Terramérica, projeto de comunicação dos Programas das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e para o Desenvolvimento (Pnud), realizado pela Inter Press Service (IPS) e distribuído pela Agência Envolverde.