No mês de junho, o Instituto de Segurança Pública (ISP) festejou mais uma queda na taxa de homicídios do Rio de Janeiro. De acordo com a entidade, responsável por produzir as estatísticas criminais do estado, ocorreram 403 assassinatos em abril, uma redução de 6,7% em relação ao mesmo período do ano passado. Por outro lado, o número de cadáveres encontrados pela polícia subiu de 45, em abril de 2010, para 60 no mesmo mês deste ano, um aumento de 33%. Esses corpos, ao menos oficialmente, não tiveram a circunstância da morte determinada e, por isso, não foram incluídos no somatório de assassinatos.

Não é possível dizer que esse acréscimo no número de cadáveres sem a causa da morte especificada possa interferir na tendência de redução dos homicídios no estado. Mas o fenômeno preocupa organizações de direitos humanos. “Há muitas formas de se maquiar dados criminais, uma delas é classificar uma morte como ‘indeterminada’. Há alguns anos pesquisamos os laudos necroscópicos de alguns desses corpos e descobrimos que muitos tinham sinais de execução”, afirma Sandra Carvalho, diretora da ONG Justiça Global.

A desconfiança com as estatísticas de criminalidade do Rio de Janeiro ganhou destaque nos últimos meses após o diagnóstico de uma distorção nos dados estaduais incluídos no Sistema de Informações sobre Mortalidade do Ministério da Saúde. Apesar da expressiva redução das taxas de homicídio, o número de mortes violentas com “intenção indeterminada” triplicou nos últimos anos. São mortes decorrentes de causas externas (e não doenças), mas não esclarecidas. Isto é, quando não se sabe se o indivíduo foi vítima de assassinato, acidente ou suicídio.

De acordo com o banco de dados do Ministério da Saúde, alimentado pelas secretarias municipais de Saúde, o estado teve 1.673 mortes violentas sem causa especificada em 2006. No ano seguinte, o primeiro do governo Sérgio Cabral (PMDB), elas subiram 90% (3.174 ocorrências). Em 2009, esse tipo de registro chegou a 5.637 casos. Isso significa que, neste ano, pelas estatísticas oficiais, houve o registro de mais mortes “indeterminadas” que homicídios confirmados (4.189).

Por meio de nota, a subsecretária de Vigilância em Saúde do Rio, Hellen Miyamoto, informou que a secretaria assinou, há dois meses, convênio com o ISP “justamente para esclarecer a causa dessas mortes”. Segundo ela, os casos relacionados aos anos de 2009 e 2010 serão reavaliados.
Há três anos, a antropóloga Ana Paula Miranda foi exonerada da direção do ISP após a entidade ter registrado um número recorde de mortos pela polícia. Em seu lugar foi nomeado o ex-comandante do Bope- (Batalhão de Operações Especiais) e atual comandante da Polícia Militar, Mário Sérgio Duarte. A CartaCapital a antropóloga afirmou desconhecer qualquer indício de manipulação dos dados após a sua saída. Mas descreveu algumas das situações que vivenciou nos quatro anos em que esteve à frente do instituto.

“O número de mortes indeterminadas deveria ser residual, e não era. Ao investigar os laudos periciais desses cadáveres, descobríamos que muitas pessoas foram vítimas de tortura, de disparos de arma de fogo ou esfaqueadas: eu encaminhava os casos à Corregedoria da Polícia e pedia a reclassificação da morte para homicídio”. Segundo a especialista, dezenas de casos foram reclassificados graças à intervenção de pesquisadores do ISP anualmente.

Hoje, sob a chefia de outro coronel da PM, Paulo Teixeira, o ISP garante que todos os seus dados são auditados, não apenas pela Corregedoria da Polícia, mas também por especialistas do instituto. “É natural o questionamento dos critérios que usamos para definir o que é homicídio, mas não podem nos acusar de manipulação. Muitos nos contestam por separar o número de mortes causadas pela polícia, mas este é um indicador importante para aferir a letalidade das forças de segurança. Quem quiser considerar homicídio e incluir na soma, pode fazer isso”, afirma Renato Dirk, analista criminal do ISP.

A situação do Rio não é um caso isolado. Na realidade, não existe uma norma que defina parâmetros nacionais para o registro e a compilação das estatísticas de criminalidade. Por isso, cada instituto ou órgão público segue a sua própria metodologia. “Isso torna inviável a comparação de dados estatísticos entre os estados. O que está sendo avaliado como homicídio em São Paulo pode estar sendo desconsiderado no Acre ou na Bahia”, afirma Renato Lima, secretário-geral do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que publica anualmente um balanço estatístico com os principais indicadores de criminalidade. Para montar as tabelas comparativas, os pesquisadores do Fórum separam os dados em dois grupos: aqueles com sistemas de informação mais confiáveis, sobretudo os estados do Sul, Sudeste e Centro Oeste, e aqueles com base estatística mais precária, em sua maioria os estados do Norte e Nordeste. “Essa diferenciação é necessária porque muitas regiões produzem dados defasados e de qualidade duvidosa. É preciso reconhecer os esforços de muitos governos, mas a situação ainda é crítica.”

Mesmo em estados com bancos de dados considerados confiáveis, um leigo pode se perder diante de tantas estatísticas diferentes sobre um mesmo fenômeno. Em Minas Gerais, há três indicadores oficiais de homicídios, um da Secretaria de Defesa Social, outro da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) e mais um do Ministério da Saúde. Nas três bases de dados, o número de assassinatos pode variar entre 2.812 e 4.108 (tabela à pág. 48).
Apesar da discrepância entre os indicadores, as diferenças se devem a questões metodológicas. Para contabilizar as mortes violentas, a Senasp trabalha com as informações dos boletins de ocorrência da Polícia Civil. Apenas quando o delegado registra o crime como “homicídio doloso ou roubo seguido de morte (latrocínio)”, conforme as especificações do Código Penal, o dado é considerado. Além disso, a estatística não costuma levar em conta o número de vítimas, e sim de ocorrências. A chacina na escola de Realengo resultou na morte de 12 crianças em abril. Mas, nos registros do Ministério da Justiça, pode ser contabilizada como um único homicídio.

A secretária nacional de Segurança Pública, Regina Miki, reconhece a precariedade dos dados. “Nosso sistema depende das informações dos estados, que usam critérios diferentes, normalmente aqueles que mais interessam aos respectivos governos”, afirma, sem citar exemplos.
Segundo Miki, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso, visitou 15 estados brasileiros e pretende percorrer todos os demais até o fim de julho para discutir um plano de redução dos homicídios no País, hoje na casa dos 50 mil por ano. Esse plano inclui a formação de um Sistema Único de Segurança Pública, com uma base de dados alimentada em tempo real pelos estados. “O maior esforço é o de pactuar com os governadores uma metodologia única de registro e tratamento das estatísticas, fazer com que todos os estados adotem os mesmos critérios. Esse projeto poderá vincular a destinação de recursos federais à alimentação do banco de dados nacional, a exemplo do que ocorre no SUS.”

Apesar de seguir uma lógica epidemiológica, os dados de violência coletados pelo Ministério da Saúde são referências importantes para os analistas criminais. Todas as mortes provocadas por causas externas e com sinais de violência, como disparos de arma de fogo e ferimentos causados por arma branca, são contabilizados como “mortes por agressão”. O registro é feito com base nas certidões de óbito e nos laudos do Instituto Médico Legal. Dessa forma, a estatística consegue captar com mais precisão o número de brasileiros assassinados, sobretudo porque também contabiliza as vítimas que faleceram algum tempo depois da ocorrência policial.

Mas esse indicador possui as suas limitações. Uma delas é a inclusão, numa mesma categoria, de tipos penais diferentes, como homicídios dolosos e lesões corporais seguidas de morte. Além disso, quando a certidão de óbito não especifica a circunstância da morte (homicídio, suicídio ou acidente), o caso é cadastrado pelas secretarias municipais de Saúde como morte de “intenção indeterminada”. Nesses casos, a cartilha oficial recomenda reavaliação dos casos, ao menos uma consulta mais criteriosa ao laudo necroscópico para verificar se, de fato, não se trata de homicídio.

O elevado número de mortes sem causa especificada indica, porém, que nem sempre a norma é cumprida. Entre 2006 e 2008, a taxa anual de homicídios passou de 49.145 para 50.133 no Sistema de Informações sobre Mortalidade. Já as mortes indeterminadas passaram de 9.147 para 12.056 no mesmo período. Em 2009, o indicador chegou a alarmantes 15.603 casos, embora os técnicos do Ministério da Saúde destaquem que os dados desse ano são preliminares e podem ser revisados. “Trata-se de uma base de dados em constante atualização”, enfatiza Otaliba Libânio, diretor do Departamento de Análise.

Na avaliação de Claudio Beato, coordenador do Centro de Estudos em Criminalidade e Segurança Pública da UFMG (Crisp), os problemas em registros de crimes sexuais e contra o patrimônio são ainda mais graves. “A subnotificação de furtos e assaltos pode chegar a 80% no Brasil. Muitas vítimas desistem de denunciar, seja por não confiar na polícia, seja porque o atendimento nas delegacias é precário.” O Crisp e o Instituto Datafolha estão em campo para fazer a primeira pesquisa nacional de vitimização da população brasileira. Cerca de 75 mil entrevistas foram realizadas e os pesquisadores esperam preencher 90 mil questionários até o fim do ano. “Ao ouvir a população, será possível contrapor as informações das vítimas com os dados oficiais apresentados pelo governo e identificar eventuais contradições.”

* Rodrigo Martins é repórter da revista CartaCapital há cinco anos. Trabalhou como editor assistente do portal UOL e já escreveu para as revistas Foco Economia e Negócios, Sustenta!, Ensino Superior e Revista da Cultura, entre outras publicações. Em 2008 foi um dos vencedores do Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos. Acompanhe também pelo www.twitter.com/rodrigomartins0.

** Publicado originalmente no site da revista Carta Capital.