Internacional

Nossos direitos não são negociáveis

Protesto em Bruxelas contra o acordo da Associação Transatlântica de Comércio e Investimentos. Foto: Lode Saidane/Amigos da Terra Europa
Protesto em Bruxelas contra o acordo da Associação Transatlântica de Comércio e Investimentos. Foto: Lode Saidane/Amigos da Terra Europa

Por Sam Cossar-Gilbert*

Bruxelas, Bélgica, 8/6/2015 – Nos dias 10 e 11 de junho os chefes de Estado de 61 países da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) e da União Europeia (UE), que representam mais de um bilhão de pessoas, se reunirão para discutir como “modelar nosso futuro comum”. Infelizmente, a agenda da Cúpula Celac-UE em Bruxelas inclui maus acordos comerciais e mais privilégios para as grandes empresas.

Muitos países europeus e latino-americanos estão atualmente participando de negociações de acordos comerciais mundiais de grande envergadura, realizadas nas costas do escrutínio público. Esses acordos são: Associação Transatlântica de Comércio e Investimentos (TTIP), Acordo de Associação Transpacífico (TPP), Acordo sobre Comércio de Serviços (Tisa), Tratado de Livre Comércio entre México e União Europeia, e uma ampla gama de Tratados Bilaterais de Investimento (TBI).

Os tratados de comércio e investimentos já não se referem somente às tarifas de importação, e tratam também de grande variedade de assuntos que determinam quais são os alimentos que comemos, que tipo de energia utilizamos e com qual capacidade contam os governos para legislar a favor do interesse geral.

Esses tratados são verdadeiros “cavalos de Troia”, embora sejam diferentes entre si de muitas e complexas maneiras. Entretanto, o que todos têm em comum é o atraso em décadas de avanços para uma melhor proteção de nosso ambiente e nossos povos, dotando as grandes empresas de um poder extraordinário e sem precedentes sobre nossas sociedades. As normas que regem assuntos como segurança alimentar, substâncias químicas e tóxicas e energia suja enfraqueceriam significativamente nos dois continentes.

Sam Cossar-Gilbert. Foto: Amigos da Terra
Sam Cossar-Gilbert. Foto: Amigos da Terra

Um dos componentes mais injustos desses tratados comerciais é a inclusão do processo de “solução de diferenças entre investidores e Estados” (ISDS). Esse sistema permite que as empresas processem os governos em tribunais privados por causa de políticas que interfiram em seus possíveis ganhos. Em nível mundial, no final de 2014, eram conhecidos 608 processos entre investidores e Estados.

Alguns dos casos de diferenças entre investidores e Estados mais conhecidos incluem a multa de US$ 16 milhões imposta ao México por proibir um depósito de dejetos tóxicos, a demanda da gigante tabaqueira Philip Morris contra o governo uruguaio e sua legislação em matéria de proteção da saúde frente ao tabagismo, e a demanda multimilionária que o governo alemão enfrenta por causa de sua decisão de não continuar com o uso de energia nuclear.

A razão que se emprega normalmente para justificar esses direitos empresariais tão exagerados é que “o processo de solução de diferenças entre investidores e Estados é necessário para promover e proteger os investimentos”. Entretanto, o Brasil é o maior receptor de investimento estrangeiro direto na América Latina, apesar de o Congresso brasileiro se negar a assinar tratados comerciais que incluam no sistema investidores e Estado.

Os tribunais empresariais privados carecem de transparência, independência, imparcialidade e não oferecem nenhum direito de apelação. Um exclusivo clube de apenas 15 árbitros, quase todos provenientes de Europa, Estados Unidos e Canadá, tomam as decisões sobre 55% de todas as diferenças conhecidas entre investidores e Estados relacionadas com tratados de investimento, segundo estatísticas de 2012.

No entanto, esses tribunais privados, que não prestam contas a ninguém, continuam aplicando multas de centenas de milhões de dólares. No dia 9 de abril, foi ordenado à Argentina o pagamento de US$ 405 milhões à empresa francesa Suez por cancelar seu contrato e devolver para as mãos de empresas públicas o abastecimento de água.

Infelizmente, os novos acordos comerciais, que muitos países da Europa e da América Latina estão negociando, apenas fortalecem e expandem esses tribunais empresariais. O que estamos vendo é um profundo ataque contra a democracia e a soberania dos Estados para legislar em favor do interesse geral.

Porém, há um movimento mundial crescente de grupos de sindicatos, sociedade civil, agricultores e cidadãos preocupados que trabalham juntos para deter esses cavalos de Troia. Por exemplo, organizações que representam milhões de pessoas de toda Europa e América Latina também se reunirão esta semana em Bruxelas para fortalecer suas estratégias mundiais contra os acordos de comércio e investimentos agenciados pelas grandes empresas.

Também estão mobilizados em uma aliança mundial por um tratado vinculante sobre empresas e direitos humanos, para que os direitos dos povos que brindam os regimes de livre comércio estejam acima dos privilégios das transnacionais.

Alguns governos, especialmente da América Latina, começaram a se desvincular dos tratados que incluem direitos empresariais exagerados, e questionam o modelo neoliberal. Em 2013, o Equador criou uma Comissão para a Auditoria Cidadã, encarregada de avaliar os tratados bilaterais de investimento desse país, e anulou acordos injustos com Finlândia, Suécia, França, Alemanha e Reino Unido.

O comércio deixou de ser um assunto periférico na Europa: mais de 1,95 milhão de pessoas assinaram uma petição contra a Associação Transatlântica de Comércio e Investimentos e dezenas de milhares foram às ruas protestar contra o TTIP. A localidade de Erkrath, na Alemanha, e centenas de outros municípios de todo o continente também votaram e se declararam “zonas livres de TTIP”. O novo governo da Grécia já disse que não ratificará o TTIP e muitos outros países da UE expressam grande preocupação pela cláusula investidor-Estado.

Há dez anos, em Mar del Plata, na Argentina, outro “cavalo de Troia” conhecido como Área de Livre Comércio das Américas (Alca) foi derrotado pela pressão de fortes movimentos sociais e pelo impulso de governos progressistas.

Diante da crescente desigualdade em nossas sociedades, precisamos de um sistema comercial mais justo que nos ajude a desenvolver sociedades sustentáveis. Esse sistema tem que apoiar as economias locais e as fontes de emprego sustentáveis, um ambiente limpo, melhor proteção social, produção de energia mais responsável e de alimentos para todos.

Enquanto os líderes de Europa e América Latina se reúnem em Bruxelas, os povos e movimentos sociais das duas margens do Oceano Atlântico sabem que podem frear os regimes atuais de comércio e investimento injustos, e continuaremos denunciando-os até derrotá-los. Envolverde/IPS

* Sam Cossar-Gilbert é coordenador de justiça econômica-resistência ao neoliberalismo da Amigos da Terra Internacional (@samcossar).