Internacional

Bebês da liberdade, símbolo da resistência

Karam e Adam, gêmeos palestinos nascidos graças ao tratamento de fertilização in vitro, ao qual sua mãe se submeteu utilizando o esperma tirado clandestinamente da prisão israelense onde seu pai está detido há 11 anos. Foto: Silvia Boarini/IPS
Karam e Adam, gêmeos palestinos nascidos graças ao tratamento de fertilização in vitro, ao qual sua mãe se submeteu utilizando o esperma tirado clandestinamente da prisão israelense onde seu pai está detido há 11 anos. Foto: Silvia Boarini/IPS

Por Silvia Boarini, da IPS – 

Gaza, Palestina, 3/8/2015 – Hula Khadoura, de 13 anos, está sentada no sofá da casa de seu avô no bairro de Tuffah, na cidade de Gaza, e no colo tem seus irmãos gêmeos, Karam e Adam, de um ano. “Estou feliz porque chegaram”, disse sorridente, com as mamadeiras dos bebês nas mãos. Uma aura misteriosa e até milagrosa cerca o nascimento dos gêmeos, já que seu pai, Saleh Khadoura, passou os últimos 11 anos em uma prisão israelense e não teve contato físico com sua mãe, Bushra, desde então.

As pessoas dizem que os gêmeos são “bebês especiais”, mas Hula não entende totalmente a razão de tanto alvoroço. Ela ignora por completo os obstáculos extraordinários que o esperma de seu pai teve que superar para alcançar os óvulos de sua mãe. Bushra Abu Saafi é uma das cerca de 30 mulheres palestinas que conceberam filhos desde 2013 com o esperma tirado clandestinamente das prisões israelenses onde seus maridos estão presos.

A organização defensora dos direitos humanos Addameer indica que atualmente há cerca de 5.750 presos políticos palestinos detidos em Israel, dos quais cerca de 5.550 são homens. As mulheres cujos maridos cumprem penas de décadas de duração não querem que as mesmas autoridades que levaram seus maridos também lhes tirem o sonho de formar uma família e aumentar a que têm.

Até há pouco, o Serviço de Prisões de Israel duvidava que o contrabando de esperma fosse possível. O porta-voz, Sivan Weizman, afirmou à imprensa que as rígidas medidas de segurança tornavam isso muito improvável. Porém, recentemente, esse organismo reconheceu que pode ser um problema.

Por sua vez, a Autoridade Nacional Palestina e o movimento Hamás nunca tiveram dúvida alguma e apoiaram financeiramente as mulheres que desejavam adotar esse método de concepção muito pouco convencional. Em maio, o Ministério de Prisioneiros Palestinos organizou uma festa de aniversário coletiva em Gaza para os pequenos “embaixadores da liberdade”, com são chamados os bebês nascidos dessa maneira.

“Foi meu marido que sugeriu testarmos o tratamento de fertilização in vitro com seu esperma clandestino”, contou Bushra à IPS, no apartamento de seu pai, onde vive com seus cinco filhos. A maioria das famílias palestinas tem ao menos um membro detido em uma prisão israelense. Para uma população sob ocupação como esta, os presos políticos são parte da identidade coletiva, e são adotados pela sociedade como irmãos, irmãs, mães e pais perdidos há tempo e que são celebrados em marchas no Dia dos Presos e em manifestações periódicas.

No âmbito privado, os presos continuam sendo pessoas individuais e ocupam lugares destacados na família. Seus artesanatos são exibidos com orgulho suas fotos adornam os quartos e o vazio que deixaram atrás de si ainda é palpável. Na sala de Bushra há uma foto de seu marido, sorridente em sua moldura, rodeado por flores em uma mesa auxiliar. Saleh foi detido aos 23 anos e acusado de pertencer à Jihad Islâmica.

Estiveram casados por cinco anos e só dois de seus filhos puderam passar algum tempo com ele em família. Quando Saleh foi para a prisão, Bushra estava grávida de Ahmed. “Não foram fáceis os últimos 11 anos. sentimos muito sua falta, meu filho Ahmed especialmente. Ele não sabe o significado da palavra pai, e diz que quando for grande quer ser como o avô”, contou Bushra.

A ideia de uma quarta gravidez foi algo com que Bushra não concordou rapidamente, e seu pai se preocupava pela pressão adicional. “Quando Saleh me fez a proposta desde a prisão, tive minhas dúvidas. Minha família e eu nos preocupávamos com o que as pessoas diriam. Imagine, grávida e com o marido na prisão”, afirmou.

O conselho que recebeu, o mesmo dado as outras mulheres submetidas à fertilização in vitro dessa maneira, foi que contasse a todos de sua família e no povoado que o esperma de seu marido tinha sido tirado da prisão e que seria utilizado para a inseminação.

Desde então, as emissoras de comunicação locais ajudaram a difundir a história e tanto a sociedade palestina como as autoridades religiosas deram seu apoio ao processo. “No final, meu pai entendeu que era meu desejo ter outro bebê e apoiou minha escolha”, disse Bushra. Passaram-se dois meses e muitos exames antes que estivesse pronta para o procedimento.

Embora as mulheres não queiram falar sobre como o esperma vence a segurança israelense e sai da prisão, se reconhece que pode ser colocado na roupa dos filhos dos detentos, sem que estes saibam. Quando as esposas visitam a prisão, só podem falar por telefone com seu marido através de um vidro, enquanto os filhos são os únicos que têm permissão para manter contato físico ao final da visita.

As clínicas que fazem o tratamento em Gaza e na Cisjordânia informam que recebem o esperma em diversos recipientes improvisados, como papel de doces e frascos de colírio. “A preparação, a espera, tudo era muito difícil. Mas quando soube que estava grávida a pressão cessou e finalmente comemoramos”, contou Bushra. A dupla surpresa veio depois, quando soube que esperava gêmeos.

“Depois do sofrimento que passei em cada visita à prisão, as revistas e a humilhação, com esta gravidez, com Karam e Adam, queria mostrar que se pode quebrar as regras”, afirmou Bushra.

Segundo Liv Hansson, especialista dinamarquesa em saúde pública que investigou a fertilidade na Palestina, a prática do contrabando de esperma ressalta o vínculo entre a fertilidade e a resistência à ocupação. “Em um contexto como o da Palestina, onde as mulheres têm uma boa educação e a mortalidade infantil é baixa, a demografia clássica prevê uma taxa de fecundidade menor” do que a existente, explicou à IPS.

Então, a alta taxa de fecundidade registrada na Palestina entre 2011 e 2013, de 4,1 filhos por mulher em seus anos reprodutivos, deve ser visto à luz da atual ocupação israelense. De fato, os palestinos consideram a fertilidade como parte de sua resistência contra a ocupação militar israelense.

Por sua vez, Israel considera que as altas taxas de fecundidade em Gaza e Cisjordânia, e em uma das áreas de maioria palestina dentro de Israel, como uma ameaça muito real. Falar da “bomba de tempo demográfica” – o momento em que os palestinos superarão em número os judeus israelenses – é muito comum.

“Uma famosa frase do ex-presidente palestino Yasser Arafat afirmava que os ventres das mulheres palestinas são a maior arma que tem a Palestina”, recordou Hassan à IPS. “A fertilidade é vista como algo de interesse não apenas da família, mas também da comunidade, da sociedade em geral e dos políticos também”, ressaltou. Envolverde/IPS