Internacional

ONU recebe o papa, mas não o Dalai Lama

Bento 16 foi o terceiro papa a falar perante a Assembleia Geral da ONU, em 2008.
Bento 16 foi o terceiro papa a falar perante a Assembleia Geral da ONU, em 2008.

Por Thalif Deen, da IPS – 

Nações Unidas, 23/9/2015 – Quando os Estados Unidos estabeleceram relações diplomáticas com o Vaticano, em janeiro de 1984, um pastor perguntou, um tanto sarcasticamente, quando Meca enviaria seu embaixador a Washington. “É um fato curioso da história que o império mais jovem do mundo, os Estados Unidos, estabeleceram relações diplomáticas com o mais antigo, a Santa Sé, há apenas pouco mais de 30 anos com (o governo de) Ronald Reagan” (1981-1989), considerado um defensor da separação entre Igreja e Estado, afirmou a revista norte-americana Time.

Nos 70 anos de existência da Organização das Nações Unidas (ONU), sucessivos papas, que representam mais de um bilhão de católicos, tiveram o privilégio de se dirigir à Assembleia Geral, integrada pelas delegações dos 193 Estados membros do fórum mundial. O papa Paulo VI o fez em 1965, João Paulo II em 1979 e 1995, Bento 16 em 2008 e o quarto será Francisco – o primeiro pontífice latino-americano – que discursará perante o maior órgão interno das Nações Unidas, no dia 25.

Mas esse privilégio não foi oferecido a outros líderes religiosos, como budistas, hindus ou muçulmanos, salvo para que participem de fóruns de alto nível. Como o Islã não é uma religião institucionalizada, não tem o equivalente a um pontífice ou a um Vaticano, embora haja mais de 1,6 bilhão de muçulmanos no mundo, um número bem superior ao de católicos. O Vaticano não é um Estado membro da ONU, mas tem o status de “Estado observador membro”, como a Palestina.

A IPS perguntou ao porta-voz adjunto da ONU, Farhan Haq, se houve algum outro líder religioso que tenha falado perante a ONU. “É possível, se o líder religioso fosse chefe de Estado”, respondeu. Porém, acrescentou, “é difícil saber”.

Em julho de 1974, o arcebispo Makarios, primeiro presidente de Chipre, se dirigiu ao Conselho de Segurança da ONU, quando foi destituído após a invasão de seu país pela Grécia. Entretanto, o Dalai Lama, líder espiritual dos budistas tibetanos, continua excluído da ONU e praticamente é declarado persona non grata, principalmente por razões políticas. O Tibete está atualmente sob domínio chinês, mas existem grupos dissidentes que querem ficar independentes da China.

Mas Pequim, membro permanente com direito a veto no Conselho de Segurança, tem uma postura intransigente quanto aos dissidentes tibetanos, e, especificamente, ao Dalai Lama, apesar de o líder religioso aceitar que o Tibete fosse uma autêntica região autônoma dentro do território chinês. Como vários Estados membros pretendem evitar que os dissidentes e separatistas ingressem na ONU, a batalha ocasionalmente se desloca para o fórum mundial.

Quando o Dalai Lama foi convidado a falar em uma reunião religiosa no final de1990, o embaixador chinês registrou seu protesto junto ao secretário-geral, o que garantiu que o líder tibetano não participasse de reuniões dentro do edifício da ONU, em Nova York. Um episódio semelhante já havia ocorrido em 1993, quando o Dalai Lama foi proibido de participar da conferência da ONU sobre direitos humanos, realizada em Viena.

“Lembro muito bem quando a Associação de Correspondentes da ONU (Unca), em maio de 1993, convidou o dissidente chinês Shen Tong, e a segurança do fórum mundial, por ordem do então secretário-geral, Boutros Boutros-Ghali, impediu sua passagem pela entrada dos visitantes, onde eu estava para lhe dar as boas-vindas”, contou à IPS Joe Lauria, correspondente do The Wall Street Journal. “Por fim, o coloquei para dentro do prédio e o levei até à porta da Unca, onde os guardas de segurança não deixaram que entrasse. Assim, o levamos novamente à rua, onde deu uma entrevista coletiva diante da porta”, acrescentou.

Outro correspondente junto à ONU disse à IPS que uma delegação de tibetanos participou de uma reunião no fórum mundial há pouco tempo. “Eram cidadãos canadenses e chegaram vestindo roupas ocidentais. Uma vez dentro do prédio, colocaram suas vestimentas tradicionais. Os chineses ficaram furiosos, mas não havia motivos para colocá-los para fora”, observou.

Outro ex-correspondente junto à ONU apontou à IPS que o Dalai Lama nunca teve permissão para falar no fórum mundial graças à China. “Descobri há anos, quando houve uma conferência de líderes religiosos de todo o mundo”, disse. O Dalai Lama teve que “cancelar” um compromisso na Catedral de São João o Divino em Nova York, recordou. “Quando perguntei aos funcionários da igreja por que permitiam a jurisdição extraterritorial da ONU, disseram sem convicção que o Dalai Lama tinha outros compromissos. Sempre duvidei disso, mas os budistas não são de gritar”, pontuou.

“Com a finalidade de ser verdadeiramente a voz dos sem voz, o papa Francisco deveria aproveitar o privilégio de poder estar na ONU para falar em nome do Dalai Lama e do povo tibetano, cujas vozes são silenciadas sistematicamente pela poderosa ditadura chinesa”, ressaltou Javier El Hage, diretor legal da organização de direitos humanos Human Rights Foundation.

“Lamentavelmente, há poucas esperanças de que o máximo representante do catolicismo faça isso, já que no ano passado se negou a uma reunião com o Dalai Lama em Roma precisamente para não desagradar os governantes da China”, destacou El Hage. O papa Francisco deve considerar que o enorme capital moral de um líder religioso pode ser perdido se não aproveita a oportunidade para estar verdadeiramente com os pobres e os oprimidos, e em seu lugar opta por tirar fotografias amáveis com líderes autoritários, e lhes dar legitimidade, acrescentou. Envolverde/IPS