Por Roberto Savio*
Roma, Itália, outubro/2015 – O último estudo global, realizado pela Pesquisa Mundial de Valores, sobre a solidez da democracia em 2015 apresenta dados extremamente preocupantes. Entretanto, é amplamente ignorado, exceto pelo jornal norte-americano The New York Times, que publicou um informe especial.
Segundo a autorizada instituição, nos Estados Unidos o número de cidadãos que aprovam a lei que legaliza a posse de armas passou de uma em cada grupo de 15 pessoas em 1995 para uma em cada seis em 2015.
Enquanto entre os nascidos antes da Segunda Guerra Mundial 72% apontaram como o valor mais alto o de viver em uma democracia, para os nascidos depois de 1980 essa porcentagem caiu para menos de 30%.
A proporção é ainda menor na Europa oriental, onde chega a apenas 24%. Nessa região o nível de renda, um trabalho seguro e a possibilidade de uma aposentadoria são mais importantes do que o tipo de regime sob o qual viver.
Existe, naturalmente, uma explicação geracional. A democracia foi um tesouro a ser conservado para quem viveu os horrores da Segunda Guerra Mundial. A geração mais jovem tem apenas uma ideia intelectual do que significa viver sob uma ditadura, não uma experiência de vida. Com disse Altiero Spinelli no pós-guerra, agora todo mundo dorme sem medo de ser acordado durante a noite.
Mas o debate é mais complexo. Aceita-se como uma verdade inquestionável que, uma vez que um país se converta em democrático, um sistema alternativo de governo não é mais possível, já que os cidadãos veem a democracia como a única forma legítima de governo.
Essa teoria pressupõe que a democracia e o crescimento econômico e social caminham paralelos e, por exemplo, vaticina que, quando a China tiver uma vasta classe média, necessariamente entrará em um sistema multipartidário.
Agora existe uma crescente corrente de opinião sobre as carências e a ineficiência da democracia. Em tempos do governo militar no Chile (1973-1990), havia os que exaltavam as vantagens do “modelo chileno”, bem como atualmente alguns afirmam que o “modelo chinês” é muito mais eficaz e produtivo do que o difícil sistema democrático.
Na própria Europa, temos o húngaro Viktor Orbán, primeiro-ministro de um país ex-comunista, que crítica a obsolescência da democracia parlamentar. E Orbán foi eleito democraticamente.
A Rússia é o caso mais estridente. Vladimir Putin, que é o modelo supremo da autocracia, tem um apoio popular de aproximadamente 80%.
É hora de refletir sobre as causas da decadência da credibilidade das instituições políticas. É apenas um problema geracional ou a legitimidade do sistema político está cada vez mais em xeque?
Quando se observa o custo da campanha presidencial nos Estados Unidos, que se aproxima dos US$ 4 bilhões, se descobre que um pequeno grupo de doadores (130 famílias e seus negócios) proporcionou mais da metade do dinheiro arrecadado durante junho pelos pré-candidatos republicanos.
A realidade parece diferente da democracia vibrante, o farol do mundo, que a retórica norte-americana proclama permanentemente.
Um estudo publicado no The New York Times pelos especialistas políticos Martin Giles e Benjamin Page assinala que, enquanto os grupos de interesse e as elites econômicas foram muito influentes nos últimos 30 anos, as opiniões dos cidadãos comuns não tiveram praticamente impacto algum, concluindo que “nos Estados Unidos a maioria não governa”.
É evidente a crescente desconexão entre os cidadãos e a política tradicional.
As mesmas surpresas surgiram na Europa, com a ascensão de Jeremy Corbyn na Grã-Bretanha e Alexis Tsipras na Grécia, expoentes de esquerda radical. É pouco provável que os partidos tradicionais consigam a maioria na Espanha. E os partidos de extrema direita continuam aumentando. O neonazista Aurora Dourada é terceiro na Grécia, por exemplo.
As duas linhas de fratura na União Europeia (UE) – a brecha entre o Norte e o Sul da Europa com relação ao modelo de governança econômica (austeridade contra o desenvolvimento) e a brecha entre Europa Ocidental e Europa Oriental com relação à solidariedade (refugiados) – estão obscurecendo a legitimidade das instituições europeias.
O fato de em uma noite um grupo de pessoas decidir em Bruxelas o destino de milhões de cidadãos, sem nenhum tipo de consulta, está criando uma terceira divisão, mais profunda e mais séria do que as outras duas.
O fato de os dois primeiros resgates gregos terem sido concebidos basicamente para beneficiar os bancos franceses e alemães, deixando muito pouco para a economia helena, aumentou a percepção dos cidadãos de que os bancos são mais importantes do que as pessoas.
Este ano, 3.178 banqueiros europeus receberam mais de um milhão de euros, dos quais 2.086 na Grã-Bretanha.
As pessoas com abundante riqueza líquida, somada a casa e a outras propriedades, somando mais de US$ 1 milhão, chegaram a 14,6 milhões no ano passado, um aumento de 7% em relação a 2013.
O que é novo nos últimos anos é que instituições conservadoras, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), advertem que o aumento da brecha social constitui um freio para o crescimento econômico, fazendo eco a um estudo da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômicos (OCDE).
O último estudo do FMI alerta para a redução da classe média e o aumento de pobres e ricos, claro que em medidas muito diferentes.
Essa queda da classe média é acompanhada por uma polarização na política e no crescimento constante dos partidos extremistas e xenófobos, que agora obtêm votos entre os trabalhadores e os menos favorecidos, que antes votavam em partidos de esquerda, o que está mudando completamente o cenário político.
Quem acreditaria que a Dinamarca, um dos poucos países que dedicam 1% de seu orçamento à ajuda ao desenvolvimento (os Estados Unidos chegam a apenas 0,2%), sob pressão da ala direita do partido governante rechaçaria qualquer refugiado em seu território? E que a Hungria recorreria a ações que são uma reminiscência da época nazista? E que, ao mesmo tempo, a Europa Oriental declare abertamente que está na UE apenas para receber ajuda e não dar nada?
O sistema democrático adquiriu legitimidade por sua capacidade de apoiar valores como justiça, solidariedade e o desenvolvimento geral da sociedade. Não há precedentes históricos para prever o que pode ocorrer em um contexto em que os cidadãos vivam uma deterioração social e econômica durante décadas e os jovens não vejam um futuro claro.
Mas há precedentes históricos que nos dizem que as sociedades em crise podem cair facilmente em regimes populistas e autoritários, especialmente se as elites ricas apoiam esse caminho.
Agora deve estar claro para todos que o sistema se decompõe e é necessário repará-lo. Mas essa democracia em queda, com tão poucos estadistas e tantos políticos, será capaz de assumir a tarefa? Esta é uma questão que, infelizmente, precisamos começar a enfrentar… Envolverde/IPS
* Roberto Savio é fundador da agência IPS e editor do boletim de notícias Other News.