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Ondas femininas transmitem paz na favela

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Duas integrantes da Rádio Mulher ensaiam para a apresentação do programa.
Rio de Janeiro, Brasil, 11/7/2011 – No Complexo do Alemão, conjunto de favelas do norte do Rio de Janeiro, vozes de mulheres começaram a soar em uma rádio comunitária, irradiando ondas de paz por onde até há pouco tempo dominava a violência e o esquecimento. Os temas de gênero, o contexto socioambiental onde vivem, saúde, emprego e os direitos femininos são o foco temático da “Rádio Mulher, um ambiente comunitário”, que começou a transmitir este mês.

Antes de entrar no ar, as participantes receberam treinamento durante um ano sobre rádio, primeiro de maneira igual para todas, depois em diferentes funções, segundo o talento demonstrado por cada uma. As novas gestoras da rádio pretendem que a emissora “exorcize” dramas que vivem desde crianças nos bairros pobres do Rio de Janeiro e em outras cidades do Brasil.

“Quais são nossos fantasmas? Violações e abusos sexuais”, respondeu sem vacilar Anatália dos Santos à IPS, uma das primeiras 28 mulheres treinadas. A rádio quer incorporar estes e outros assuntos que assustam e dos quais “ninguém quer falar”, como surra dos maridos, dependência econômica dos homens, e mães que precisam criar sozinhas os filhos, acrescentou. “Parece que as mulheres são mais lutadoras, mas não foram criadas para conseguir seu emprego, para ter sucesso, para progredirem sozinhas”, disse Anatália.

Por isso, a seu ver, muitas mulheres desta e de outras favelas estão presas pelo arrazoamento de que “prefiro o ruim com ele ao pior sem ele”, acrescentou. Anatália é assistente de enfermeira e também uma “Mulher de Paz”, como suas colegas da emissora, que é sintonizada no Complexo do Alemão e áreas vizinhas pela frequência modulada 98,7. Mulheres de Paz é um Programa do Ministério da Justiça que recruta líderes mulheres em suas comunidades para atuarem como mediadoras nos problemas de seus moradores.

A antropóloga Solange Dacach, coordenadora de campo no Rio de Janeiro do Mulheres de Paz e da emissora, explicou à IPS que um eixo da iniciativa é trabalhar com jovens das periferias, já que são as maiores vítimas da violência no Brasil. “Havia um número muito grande de letalidade juvenil, em disputas por territórios em razão do tráfico de drogas”, recordou.

O Complexo do Alemão, conjunto de 13 favelas onde vivem entre 70 mil e cem mil pessoas, era um desses cenários até que, em novembro de 2010, o governo do Estado do Rio de Janeiro expulsou os grupos armados do tráfico por meio de uma maciça incursão policial e militar. Após recuperar o território, as autoridades estabeleceram uma “invasão social permanente”, com obras de apoio comunitário.

“Ninguém quer viver vendo armas, vendo seus filhos sem outro futuro que não o de usar uma arma”, disse Anatália. Apesar desta ostensiva presença da “força de pacificação do Exército”, muitos, nessa e em outras favelas que sofreram intervenção no Rio de Janeiro, temem que o Estado as abandone e o tráfico volte e pratique represálias. As responsáveis e participantes da Rádio Mulher reconhecem que o ciclo de violência não acaba de um dia para outro e que só se rompe com “uma cultura de paz”.

A emissora se integra no contexto das mulheres como gestoras dessa cultura de paz, originada, segundo Solange, nos papeis da maternidade e do cuidado, seja de origem cultural ou natural. Uma realidade que se baseia em um fenômeno importante no Brasil: “O surgimento de líderes femininas, ao contrário de líderes masculinos”, destacou a antropóloga. “Há no Brasil um grande número de movimentos de mães: mães de crianças e jovens desaparecidos, de filhos torturados pela ditadura (1964-1985)”, enumerou Solange, para destacar que isso faz parte de uma tradição de mulheres na luta feminista, em política, em bairros ou movimentos contra a carestia, entre outros.

Com a rádio, as mulheres do Complexo do Alemão querem fazer da paz algo concreto, presente nos assuntos cotidianos. Na lista de temas a incluir estão saúde da mulher, doenças venéreas, controle de natalidade ou saneamento ambiental, disse Márcia Rolemberg, responsável de educo-comunicação da Secretaria de Meio Ambiente.

Apoiada por outras instituições governamentais e não governamentais do Estado, a Rádio Mulher lançou no dia 2 seu primeiro programa: “Nas ondas do meio ambiente”, que aborda o assunto “como um todo”. Segundo Márcia, “tratamos a questão socioambiental como intervenção”. As “questões sociais estão relacionadas às situações ambientais nas quais elas estão inseridas e, por tudo isto, o programa está focado em assuntos de gênero”, acrescentou, ressaltando que não reduz o conceito ambiental a plantas ou flores.

Fruto de bairros pobres e violentos, às mulheres não faltam temas para desafogar. “Por minha experiência de vida, quero transmiti-la às mulheres que não podem estar à mercê de uma pilha de roupas”, disse à IPS Ivanir Toledo Barbosa. “É preciso pensar em sua família, mas também em seu objetivo de crescer”, acrescentou Ivanir, casada com um cozinheiro de restaurante turístico, muito satisfeito com o que sua mulher faz. “É mais ativa com suas coisas, está mais contente, e eu também”, disse à IPS Luiz Pereira de Sousa, enquanto preparava o almoço para a família. “Se o homem não for unido à sua família, tampouco venceremos”, assegurou.

Ivanir, uma ex-menina de rua que sobreviveu sozinha, quer que se trate de um tema que ainda lhe causa dor: a violência sexual. Muito realizada em seu casamento, com uma filha e ativa integrante da Mulheres de Paz, Ivanir não esquece que a rua é especialmente violenta para as meninas e adolescentes. “Se você pede a um homem um prato de comida, sabe a primeira coisa em que vai pensar. Sofri violência desde que saí de casa. Coisas de violação e abuso. E não com um, dois, ou três, mas com mais. Ali, sem querer, à mercê dessa pessoa”, contou com voz sumida.

Anatália, por sua vez, quer abordar a questão do trabalho. “Em geral, os cursos de capacitação profissional para conseguir emprego estão dirigidos especialmente aos homens e, no entanto, o maior desemprego é entre mulheres, que também muitas vezes são chefes de família”, justificou.

O programa inaugural abordou um tema de especial interesse na comunidade: o lançamento de uma campanha para prevenir contra a dengue e a propagação de seu mosquito transmissor, o Aedes aegypti, e para isso contou com assessoria do Ministério da Saúde. Estruturado como um ameno diálogo entre vizinhas, o programa incluiu desde conselhos sobre como manter os lugares sem lixo até o reconhecimento dos sintomas da dengue.

As Mulheres de Paz atuarão como gestoras da emissora, que estará aberta a todas as vozes da comunidade, não apenas por ser sua obrigação como mídia comunitária, mas por vocação, explicaram à IPS, durante um painel em que continuam se capacitando. No Complexo do Alemão, as mulheres pretendem eliminar duas carências: “cuidado ambiente” e “ambiente feminino”, e querem fazer isso com o que vários países latino-americanos chamam de “boas ondas”. Envolverde/IPS