A saúde precária do planeta, como pode ser facilmente observada, é causa direta da interferência desordenada do ser humano no meio ambiente.
Por Marcus Eduardo de Oliveira*
De certa forma, a história da humanidade é marcada por profundas e constantes transformações – avanços tecnológicos, urbanização, explosão populacional, disseminação de informações -, para citar apenas esses poucos exemplos. Inexoravelmente, essas – e quaisquer outras – transformações, cedo ou tarde, acabam nos acertando em cheio; razão pela qual sempre percebemos o mundo em frenético movimento.
Dentro desses poucos exemplos citados, vale dar especial atenção, primeiramente, a taxa de urbanização. Se, em 1800, apenas 3% dos indivíduos no mundo viviam em cidades, duzentos anos depois – dados de 2010 – metade da população mundial é citadina.
Para o ano de 2060, há uma previsão de que 80 por cento da população mundial estará habitando os centros urbanos, abandonando assim os costumes da vida rural.
Em 1900, quando a população mundial contava 1,6 bilhão de habitantes, apenas 12 cidades mundiais possuíam mais de 1 milhão de moradores. Cinquenta anos depois, esse número de cidades saltou para 83. Hoje, com 7,2 bilhões de habitantes, existem 23 megacidades com população superior a 10 milhões de habitantes.
Para 2050, com projeções indicando uma população global de 9,5 bilhões de pessoas, serão 50 as cidades mundiais que terão população superior a 10 milhões de indivíduos, pressionando por serviços ecossistêmicos, desequilibrando mais ainda a situação ambiental, agravando um pouco mais a já combalida saúde do planeta.
Esse inchaço populacional das megacidades, obviamente, permite então degradar a qualidade de vida dos povos de diferentes maneiras, quer seja nas inóspitas condições de moradia, no ar que se respira, no caótico trânsito, no aumento da marginalidade e da insegurança, na explosão do subemprego com salários aviltados pelo excesso de mão de obra entre outros.
Com isso, nem é preciso ressaltar que transformações tecnológicas e científicas, independentemente dos setores em que se manifestam, mudam completamente padrões de comportamento social e humano. Às vezes, para o bem; outras, nem tanto.
No estágio atual em que as coisas estão cada vez mais interligadas, afinal, tudo se conecta a tudo, uma vez que nada está separado, é comum parte considerável da humanidade não dar devida atenção às duas forças mais poderosas que conferem sentido ao universo: a vida e o amor.
Por conta disso, a maioria – mas não todos – dos indivíduos se afastam não raras vezes da busca espiritual, deixando de lado suas crenças religiosas, relegando, pois, a segundo plano a prática de alguns princípios e valores éticos, preferindo no lugar um mergulho no mundo material – objeto de cobiça para uma pretensa vida hedonista, recheada de satisfação e prazer, a partir da acumulação de bens e do usufruto de serviços.
Isso, inequivocamente, leva a civilização a um completo isolamento dos princípios mais elementares da vida, bem como das mais importantes relações sociais. Não obstante, opera-se no interior das pessoas a falsa sensação de se achar pertencente a uma raça superior, verdadeiros “senhores absolutos do universo”; muitos se julgam, comumente, capazes de subjugar a tudo e todos, incluindo às leis da natureza, usadas e exploradas ao próprio bel-prazer dos povos.
Talvez isso explique, em linhas gerais, a ruptura do ser humano com a natureza, do homem com o meio ambiente, da criatura com as coisas naturais (a água, o ar, o solo, as plantas, os animais) feitas pelo Criador. Tal conduta leva à configuração de uma crise maior, por isso sistêmica, tal qual a vivenciada atualmente.
Desse modo, somos forçados a pensar que, desde que a modernidade colocou o indivíduo no centro de tudo, o aparecimento e acirramento de diversas crises – econômica, cultural, ambiental, agrícola, de ausência de valores morais – foi então facilitada, e cada vez mais se imiscui em nosso convívio.
Ademais, não é nossa intenção analisar aqui de forma pormenorizada cada uma dessas crises. Mesmo assim, três delas – ausência de valores morais, econômica e ambiental – merecem, en passant, algumas breves notas.
Dessas três crises, a mídia parece sempre dar mais destaque a econômica. Diante disso, os diferentes governantes, agindo como espécies de “médicos-salvadores” da enfermidade global, adotam sempre o mesmo tipo de remédio milagroso: doses excessivas de crescimento industrial injetado nas veias econômicas, a partir da recuperação e do incentivo ao consumo.
No entanto, esse “corpo médico”, não raras vezes, faz vistas grossas aos efeitos colaterais do medicamento aplicado, não se dando conta de que o aumento brutal do consumo verificado nas últimas décadas no mundo globalizado constitui, essencialmente, uma das causas principais (senão a principal) da patologia consumista que só faz agravar a já combalida saúde do planeta, decorrente do esgotamento dos serviços ecossistêmicos e da acintosa depleção natural imposta pelo modo de produção econômica global.
Tal qual uma infecção generalizada, da crise econômica resulta então a crise ambiental; por sinal, de proporções e consequências mais graves que a primeira.
Mapeando a origem da atual crise ambiental, a meu ver, ela pode ser contada justamente a partir da posição central que o indivíduo passou a ocupar na civilização, quando decidiu tomar decisões pautadas numa lógica que, de três séculos para cá, tem ditado o ritmo e o estilo de vida da humanidade.
Qual seria essa lógica? A que faz do consumismo espécie de escada de acesso à melhoria de vida pessoal, como se a aquisição (e o acúmulo) de coisas materiais resultassem automaticamente em mais felicidade e bem-estar.
Envolvido na busca das coisas materiais, quase que literalmente “consumido” pela ideologia consumista, adepto da financeirização da economia e da homogeneização cultural, sequioso de alcançar o progresso pessoal em curtíssimo prazo, o homem de hoje, erroneamente chamado de moderno, insiste em quantificar – pela via monetária – a vida em toda sua plenitude. Lamentavelmente, isso parece conduzir os indivíduos à terceira crise que mencionamos: a ausência de valores morais.
Essa crise, como não poderia deixar de ser, também apresenta idiossincrasias próprias: começa a partir do “valor” e da prioridade conferidas ao mercado de consumo e as mercadorias, aos bens e serviços consumidos, a partir do momento em que os indivíduos passam a ser conduzidos pelo mercado publicitário, pela mania consumista, e, não obstante, acabam sendo “abduzidos” pela obsolescência programada, pela moda e pelo constante apelo de marketing.
Não por acaso, em pouco tempo a indústria da publicidade se tornou o segundo maior orçamento mundial, perdendo apenas para a indústria bélica.
Voltando a atenção para o ser humano, é fato indiscutível que em nenhum outro momento da história a humanidade se viu assim, mergulhada numa sociedade de descarte, em que “comprar algo novo” tem mais importância que consertar o usado; em que o “ter” tem mais “peso e valor” – em alguns casos até mesmo valor sentimental – do que o “ser”.
A taxa de derrelição material da humanidade nunca foi tão abusiva e tão sem sentido. Somos hoje transformadores de lixo; descartamos tudo. Na média, cada indivíduo consegue produzir 1 quilo de lixo por dia. No mundo, a cada 24 horas, dois milhões de toneladas de esgoto e outros efluentes são lançados nas águas do mundo, de acordo com estudos publicados pela UNESCO/WWAP-2003.
Por tudo isso é recorrente a afirmação de que essa crise de ausência de valores morais passa também pelo tratamento desdenhoso que a civilização confere à natureza, sempre subordinando-a às condutas econômicas que respondem, por sua vez, por mais produção, sem a prática mínima de ética alguma, sem o menor cuidado e parcimônia quanto aos limites existentes na natureza, especialmente no que concerne ao uso dos recursos naturais e energéticos.
A prova cabal disso é que a humanidade, desde os anos 1980, vem usando 20% a mais do que o planeta é capaz de oferecer. Se a saúde do planeta já estava debilitada, imaginemos um corpo (a Terra) 20% mais quente, em termos febris.
Colocando essa questão num terreno mais sólido, explicitamente o elo existente entre produção, consumo, seres humanos e biodiversidade, mostra uma relação bem conflituosa, resultando em considerável perda, alteração e fragmentação de habitats, e destruição do patrimônio natural.
Consoante a isso, as Pegadas Ecológica e Hidrológica – medidas de demandas da humanidade sobre os recursos naturais renováveis da terra – evidenciam de forma clara a insuportável pressão exercida pelos humanos sobre o Planeta.
Em torno disso, os números não mentem: 10% das terras férteis do mundo já viraram desertos; a cada ano, 13 milhões de hectares, equivalente ao território da Grécia, são desmatados para dar lugar a atividades agropastoris.
O mundo já perdeu, apenas nos últimos 50 anos, 35 por cento dos manguezais, 40 por cento das florestas e 50 por cento das áreas alagadas. O estoque de peixes, em âmbito global, nesse momento em que escrevo, está 80 por cento menor.
Assim, já adentramos na fase da defaunação, termo que indica a ação de defaunar, ou seja, remover ou destruir uma população de animais. A taxa de extermínio de espécies – plantas e animais – ocasionada pela ação humana, tem sido estimada de 50 a 100 vezes superior à perda por causas naturais. Por dia, a humanidade elimina quase 150 tipos diferentes de organismos vivos – componentes bióticos.
A saúde precária do planeta, como pode ser facilmente observada, é causa direta da interferência desordenada do ser humano no meio ambiente. Em outras palavras, por conta de nosso consumo excessivo, de nosso estilo de vida, de nosso jeito agressivo de lidarmos com o mundo natural, somos agentes causadores da enfermidade ecológica que tem desequilibrado as condições naturais da Terra.
Não há como esconder o sol diante de uma peneira: a combalida saúde do planeta tem tudo a ver com a nossa ação sobre o meio ambiente. Contra fatos, não há argumentos. (EcoD/ #Envolverde)
* Marcus Eduardo de Oliveira é economista e ativista ambiental [email protected].
** Publicado originalmente no site EcoD.