Internacional

Sistema de resposta humanitária em xeque

Famílias deslocadas no atribulado norte do Paquistão regressam às suas casas. Foto: Ashfaq Yusufzai/IPS
Famílias deslocadas no atribulado norte do Paquistão regressam às suas casas. Foto: Ashfaq Yusufzai/IPS

Mais de 125 milhões de pessoas necessitam de assistência humanitária. A cúpula deste mês não representa apenas um chamado à ação, mas também um alerta para reformar o tenso sistema humanitário.

Por Tharanga Yakupitiyage, da IPS – 

Nações Unidas, 9/5/2016 – A Cúpula Humanitária Mundial parece oportuna no contexto de um número histórico de pessoas deslocadas e refugiadas, mas, precisamente, apresenta uma questão vital: o sistema humanitário está quebrado ou partido? A primeira Cúpula Humanitária Mundial, que acontecerá nos dias 23 e 24 deste mês, em Istambul, na Turquia, foi convocada pelo secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Ban Ki-moon, para atender as graves necessidades humanitárias atuais.

“Acreditamos que é uma oportunidade única para enfrentar o problema e atender milhões de pessoas que sofrem no mundo”, destacou em entrevista coletiva o representante da União Europeia (UE) na Organização das Nações Unidas (ONU), João Vale de Almeida. Mais de 125 milhões de pessoas necessitam de assistência humanitária. Se fosse um país estaria em 11º lugar em número de habitantes. Mais de 60 milhões de pessoas foram forçadas a abandonar suas casas, o que gerou a pior crise humanitária desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

Além disso, as crises se estendem, e aumenta o tempo de deslocamento, de nove para 17 anos. No começo deste mês, faltavam quase US$ 15 bilhões da quantia solicitada para enfrentar as diferentes crises, incluídas Nigéria, República Centro-Africana e Síria. Cerca de 90% dos pedidos de fundos da ONU se estendem por três anos.

A cúpula deste mês não representa apenas um chamado à ação, mas também um alerta para reformar o tenso sistema humanitário. Entre as principais responsabilidades dessa reunião, se destaca a de fortalecer as associações e gerar um processo com múltiplos atores, que coloque a população civil no centro da ação humanitária.

“O atual sistema permanece bastante fechado, com poucas conexões com uma ampla gama de atores”, diz um informe que resume o processo de consultas com cerca de 23 mil representantes antes da cúpula. “E é considerado desatualizado”, acrescenta.As estruturas humanitárias e de ajuda mudaram muito pouco desde sua criação, concordou Christina Bennett, pesquisadora do Grupo de Políticas Humanitárias do Instituto de Desenvolvimento Exterior (ODI). “Continua sendo um estilo vertical e paternalista de fazer as coisas”, afirmou à IPS.

Em um informe para o ODI, Bennett conclui que o sistema criou um grupo exclusivo e centralizado de doadores e atores humanitários, que exclui a participação das organizações não governamentais locais. Em 2014, 83% dos fundos para a assistência humanitária procedeu de governos da Europa e da América do Norte.Entre 2010 e 2014, as agências da ONU e as grandes ONGs receberam 85% da assistência humanitária internacional. Enquanto isso, menos de 2% foram parar diretamente nas mãos de organizações nacionais e locais, o que impediu a rápida e tão necessária assistência no terreno.

A enfermeira Sarah Collis, do capítulo da Grécia da organização Médicos do Mundo, falou à IPS sobre seu trabalho no acampamento de refugiados de Idomeni, nesse país, e ressaltou a falta de recursos médicos e suprimentos básicos, como alimentos e cobertas. “A distribuição de cobertores só acontecia à noite, porque as agências humanitárias se preocupavam com a multidão. Isso significa que as mães solteiras e as famílias com crianças pequenas não tinham possibilidades”, acrescentou.

Collis também recordou que só havia duas ambulâncias para toda a região, e às vezes sua equipe tinha que amontoar até seis pessoas ao mesmo tempo em uma unidade. Os grupos de resposta mais rápida eram as pequenas organizações e voluntários com fontes de financiamento diretas e menos burocracia, explicou.

Seja no último terremoto do Equador ou na crise pelo vírus ebola na África ocidental, as comunidades e ONGs locais costumam ser as primeiras a responder, por sua proximidade à crise. Também sabem melhor como chegar às áreas de difícil acesso, estão familiarizadas com as pessoas e culturas e podem atender e reduzir os riscos antes da ocorrência de um desastre.Por outro lado, as grandes organizações e instituições, como a ONU, costumam ter dificuldades para realizar operações humanitárias eficientes e efetivas.

A organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) identificou a ONU como o “eixo da disfunção” do sistema humanitário. Também concluiu que o triplo papel do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), de coordenador, executor e doador, foi responsável pelo mau rendimento das operações no Sudão do Sul, na Jordânia e na República Democrática do Congo. No condado sudanês de Maban, o Acnur foi responsável pela lenta resposta e teve dificuldades para mobilizar o pessoal qualificado.

O “triplo” papel também dificultou a terceirização de tarefas para organizações locais para combater os desafios da execução e que a agência “reconhecesse os grandes problemas ou pedisse ajuda técnica a outras agências da ONU, por medo de perder os fundos ou credibilidade”. Isso teve consequências negativas na qualidade da informação para tomar boas decisões políticas.

Embora alguns fundos das agências da ONU e de ONGs internacionais se destinem a organizações locais, a relação é mais “transacional” do que “uma participação estratégica e genuína”, destacou Bennett. Por exemplo, quando se outorga assistência, esta costuma responder à disponibilidade de bens e serviços, não ao que realmente necessitam ou querem as pessoas a serem beneficiadas.

“As organizações do Sul reclamam acompanhamento, mais do que instruções”, pontuou o diretor executivo da Soluções para o Desenvolvimento Africano (Adeso), Degan Ali, a funcionários governamentais, representantes da ONU e da sociedade civil. “Preparem-se para ficarem incomodados”, resumiu.Embora todo o mundo coincida quanto à importância do papel das ONGs internacionais e dos governos doadores no sistema humanitário, há uma crescente compreensão de que esses atores devem mudar de uma posição dominante para outra habilitante.

Organizações como a Oxfam e a Adeso reclamaram que a ONU e as grandes ONGs internacionais habilitem as organizações locais fornecendo fundos a elas. Isso não só as ajudará a preparar e melhorar sua resposta às crises, como também colocará o processo de decisão e o poder “onde devem estar”, afirmou a Oxfam.E pediram urgência para a fixação de 20% como meta para destinar às organizações locais. Já foi criado um estatuto para comprometer as ONGs internacionais, que já foi assinado pela Oxfam, Care International e Islamic Relief Wordwide.

Apesar de todas as ações tomadas, Bennett disse à IPS não acreditar que a Cúpula Humanitária Mundial vai gerar mudanças. “Creio que não está na agenda da cúpula, em parte por serem questões difíceis de atender e assuntos políticos, que não são vitórias fáceis”, apontou. Para conseguir mudanças fundamentais, os governos e as instituições doadoras com poder de decisão devem atender as hipóteses subjacentes e as dinâmicas de poder que atrasam o sistema, destacou, enfatizando que,“até que se movam, este permanece paralisado”. Envolverde/IPS