Internacional

Longo desastre humanitário na Colômbia

Atores sociais e representantes do governo durante a assinatura de um pacto social e político pela reparação e pela paz da Colômbia, subscrito em 11 de abril, no Dia Nacional da Memória e da Solidariedade com as Vítimas do Conflito. Foto: Uariv
Atores sociais e representantes do governo durante a assinatura de um pacto social e político pela reparação e pela paz da Colômbia, subscrito em 11 de abril, no Dia Nacional da Memória e da Solidariedade com as Vítimas do Conflito. Foto: Uariv

Por Constanza Vieira, da IPS – 

Bogotá, Colômbia, 17/52016 – “Se vão falar da Colômbia e do processo de paz, falem à parte”, ouviu-se nas reuniões preparatórias regionais da Cúpula Humanitária Mundial (CHM), segundo Ramón Rodríguez, diretor da Unidade para a Atenção e Reparação Integral às Vítimas (Uariv). “Assim falou em seu momento, por exemplo, o representante de Cuba: ‘esta é uma Cúpula Humanitária Mundial, vamos falar de todo o tema humanitário em geral, e não de casos específicos’”, contou, sobre os preparativos para a primeira reunião deste tipo, que acontecerá em Istambul, na Turquia, nos dias 23 e 24 deste mês.

“Para os que prepararam a CHM, o tema fundamental são os desastres. Quase nos evitaram”, acrescentou Rodríguez, diretor de Gestão Social Humanitária da estatal Uariv, em entrevista à IPS em seu escritório em Bogotá.Isto apesar de o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Ban Ki-moon, ter convocado a Cúpula com a finalidade de “não deixar para trás nenhuma pessoa que esteja em um conflito (armado), nenhuma com pobreza crônica e nenhuma que viva com o risco de perigos naturais e da elevação do nível do mar”.

Neste caso, “a questão (da guerra colombiana) é muito falada mas muito limitada”, segundo Rodríguez, o engenheiro industrial que organizou e dirige a logística da maior ajuda humanitária do mundo, por porcentagem do orçamento nacional de um Estado para seus próprios cidadãos.A Colômbia é o único país da América Latina e do Caribe onde foi declarada uma crise humanitária devido ao seu conflito interno armado. Em quase 70 anos de uma guerra civil de diferentes fases, a contagem de vítimas e a atenção ao problema sofreram também intensas mudanças.

Hoje funciona, efetivamente, quase como uma atividade industrial, adaptada a um desastre longo e calculado.“Somos, o governo, o principal ator humanitário na Colômbia, temos uma equipe de atenção de emergências. Trabalhamos com as organizações humanitárias por meio das equipes humanitárias locais”, explicou Rodríguez.Talvez a principal lição que o governo colombiano aprendeu seja a de que deveria reconhecer quantas vítimas havia, para poder enfrentar a dimensão da crise humanitária.

Até 2004, houve um aperta e afrouxa a respeito. Em 1962, o estudo A Violência Colombiana (dos intelectuais Guzmán, Fals e Umaña) calculou em 200 mil os assassinados entre 1948 e 1962. A contagem sobre deslocamento começou em 1985 pela Igreja Católica, que então era a única instituição não governamental com capacidade para fazer um censo nacional de deslocados. Em 1994, o governo alegava haver 600 mil deslocados, mas o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), contabilizava 900 mil.

Mas foi uma sentença de tutela de 2004, do Tribunal Constitucional, que obrigou o governo a dar rosto às sequelas da guerra e, paulatinamente, reconhecer o número real de deslocados. O Tribunal pôde verificar o cumprimento da sentença com apoio daComissão de Acompanhamento da Política Pública sobre Deslocamento Forçado,uma aliança não governamental de acadêmicos e pesquisadores.

Finalmente, em 2011, por iniciativa do atual governo de Juan Manuel Santos, que começou seu mandato um ano antes, foi aprovada a Lei de Vítimas e Restituição de Terras (Lei 1448 de 2011), que, entre muitas medidas, cria a Uariv. Naquele momento, o governo reconhecia 4,5 milhões de vítimas. A Uariv abriu um Registro Único de Vítimas, que até 1º de abril de 2016 registrava um total de 8.040.748 vítimas desde 1985.

Em meio ao debate sobre sub-registro de vítimas, se o número de vítimas aumentou, ou se o que aumentou foi o registro junto ao Estado, hoje a Uariv sabe que 84,2% das vítimas registradas é de deslocados, ou que 45,4% provêm do geoestratégico, rico e dinâmico departamento de Antioquia.Ou que os picos das ameaças tendem a coincidir com os picos do despojo de terras, que se intensificou entre 1995 e 2007, e que os sequestros (0,5% das vítimas) tiveram seu pico em 2002 e hoje tendem a desaparecer.

Igualmente, que os piores anos da guerra foram de 2000 a 2008, e que 2015 foi o ano mais Pacífico desde 1985.Também que há um pouco mais de vítimas mulheres do que homens, que vítimas crianças é o que mais há., e que um quarto das vítimas é de afrodescendentes e indígenas.

Em pleno processo de paz com a guerrilha comunista das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), Rodríguez monitora. “Pedi um relatório do período entre 1º de janeiro e 30 de abril. No ano passado tínhamos, para o mesmo período, 15 deslocamentos em massa. Em 2016, temos 16. Em 2015, tínhamos 1.425 famílias afetadas, 5.721 pessoas. Hoje temos 1.200 pessoas a mais. O que significa que houve um aumento entre 2015 e 2016, considerando o mesmo parâmetro de janeiro a abril”, afirmou.

O aumento é atribuído a grupos criminosos, ex-paramilitares e ao Exército de Libertação Nacional, guerrilha castrista com a qual o governo acaba de anunciar a abertura de uma negociação.Agora a Colômbia está às portas de assinar um acordo de paz, mas Rodríguez prevê uma “espera de três a cinco anos para a consolidação. Haverá um aumento da violência”, não só por antigos paramilitares, como por guerrilheiros que não se integrariam à paz.

“Algo que não se pode esquecer é de mostrar na CHM o aumento da violência que acontecerá no momento da assinatura do acordo. O assunto do controle territorial é muito importante para os atores armados, e conflui com o tema econômico”, apontou Rodríguez. A“rota de atenção, assistência e reparação” que modelou a Colômbia é outro elemento fundamental que seria útil compartilhar na cúpula de Istambul.

A rota tem duas fases. A primeira, de ajuda humanitária imediata, funciona 48 horas depois de ocorridos os fatos violentos e tem duas formas de ajuda: em dinheiro, por intermédio dos municípios, e em espécie, por meio de operadores subcontratados, que obtiveram mais de US$ 5 milhõesem 2015.Depois de alguns meses vem a inscrição no Registro Único de Vítimas e começa a ajuda de emergência e transição (ajuda para moradia e alimentação). A última fase é a reparação, que inclui uma indenização administrativa.

“A verdadeira reparação é a verdade”

A jornalista JinethBedoya rejeitou, em 11 de maio, a indenização equivalente a US$ 8.248, que havia aceitado dois anos antes, quando o governo estabeleceu 25 de maio como Dia Nacional pela Dignidade das Mulheres Vítimas de Violência Sexual, data em que ela foi sequestrada e violada por paramilitares devido à sua atividade jornalística, em 2000.

Ao receber a indenização,Bedoya alertou que esta não poderia ser considerada como reparação. Apesar disso, Iris Marín, subdiretora da Uariv, em audiência pública há um mês na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CUDH), apresentou a indenização a Bedoya como um caso de ação efetiva em matéria de reparação.

“A verdadeira reparação é a verdade”, destacou a jornalista em entrevista coletiva. O El Tiempo, jornal onde ela trabalhava, afirmou: “O Estado assegura que seus agentes não participaram dos fatos, quando existem provas indicando a responsabilidade de agentes estatais no sequestro, tortura e violência sexual contra Bedoya”. A Fundação para a Liberdade de Imprensa espera que a CIDH envie este caso ao Tribunal Interamericano de Direitos Humanos.Envolverde/IPS

Vítimas registradas junto ao Estado – 1985-2015

Deslocamento: 84,2%

Homicídio: 3,5%

Ameaça: 3,4%

Desaparecimento forçado: 2,1%

Perda de bens móveis ou imóveis: 1,3%

Ato terrorista/Atentado/Combate/Hostilidade: 1,1%

Sequestro: 0,5%

Minas pessoais/Munição sem explodir/Artefato explosivo: 0,2%

Crimes contra a liberdade e a integridade sexual: 0,2%

Tortura: 0,1%

Abandono ou despojo forçado de terras: 0,1%

Vinculação de meninos, meninas e adolescentes: 0,1%

Sem informação: 3,2%

*Fonte: Unidade para a Atenção e Reparação Integral às Vítimas.