A sustentabilidade é turquesa

É cedo para apostar, mas a cúpula global de junho sobre desenvolvimento sustentável talvez não se apequene em mera Rio+20. A julgar pelas plataformas lançadas por organizações internacionais, começa a parecer possível que ela venha a catalisar um histórico impulso ao vacilante processo de ruptura ideológica com o crescimento econômico marrom. Mesmo que sob a égide da tão ilusória quanto cômoda bandeira da “economia verde”.

Quem exclui tal hipótese precisa ler o GGTT: The Great Green Technological Transformation, título do World Economic and Social Survey 2011, publicação anual do departamento de assuntos econômicos e sociais da Organização das Nações Unidas (ONU). Dá um banho de água fria na generalizada retórica água com açúcar sobre a sustentabilidade.

Na contramão da linha adotada por todos os outros documentos do gênero, o GGTT lança ataque frontal aos mais frequentes equívocos sobre a transição energética. E, ainda mais importante, não pretende fingir que desconhece a pertinência do debate científico de meio século sobre os limites socioambientais do próprio crescimento econômico.

Espinafra a repetidíssima cantilena de que já existem as soluções tecnológicas para um efetivo combate ao aquecimento global, demonstrando seu exato avesso. Malgrado a criação do IPCC (1988) e de toda a parafernália institucional saída da Convenção do Clima (1992) e do Protocolo de Kyoto (de 1997, em vigor desde 2005, com suas dezesseis conferências das partes), a transição tecnológica no âmbito energético desencadeada pelas crises do petróleo dos anos 1970 sofreu fortíssima desaceleração nas últimas décadas.

Nessa mesma linha, faz um balanço das intervenções governamentais e correspondentes reações empresariais na promoção da pesquisa científica e tecnológica sobre energias limpas, concluindo que será impossível atingir nos próximos 40 anos o grau de descarbonização sonhado pelos compromissos de Cancún.

Melhor: o GGTT também revela que o desenvolvimento humano de qualquer país deixa de avançar a partir de um patamar de consumo energético equivalente a duas toneladas de petróleo per capita (110 gigajoules). Em decorrência, chega a discutir a proposta de adoção de tetos (caps) para o uso de energia nos países mais ricos, o que seria extremamente benéfico para o mundo inteiro.

Reduzir ou contingenciar o setor energético das nações mais avançadas não levaria necessariamente a uma menor expansão ou estabilidade de seus sistemas econômicos. Entretanto, é justamente nesse tipo de “decrescimento seletivo” que se baseia a tese de que a vanguarda do primeiro mundo já pode dar início às mudanças que deverão levá-la à “prosperidade sem crescimento”. O fundamental é que simultaneamente decresçam, por exemplo, as intoxicações consumistas, a alimentação industrializada, a produção de coisas descartáveis ou sem possibilidade de conserto, a opressão dos produtores e consumidores pelas grandes cadeias de supermercados, o uso de automóveis particulares, e o transporte rodoviário de mercadorias em favor do ferroviário. Simultaneamente, poderão continuar a crescer os serviços, os transportes públicos, a economia plural (que inclui a economia social e a solidária), as obras de humanização das megalópoles, e a agropecuária familiar e ecológica.

Em vez de ser tão explícito sobre esse processo de mudança para a “prosperidade sem crescimento”, o GGTT não surpreende ao optar por prudência bem mais realista. Lembra apenas que não se nota qualquer propensão a encarar as necessárias “grandes transformações estruturais das economias e das sociedades”. Isto é, as transformações globais e nacionais de caráter redistributivo que nenhum setor da ONU, da OCDE, do FMI, ou do Bird, ousaria sugerir ou aconselhar. Afinal, este é o maior tabu nas relações internacionais, apesar das evidências de que as desigualdades atrofiam o bem-estar. Não apenas dos mais pobres, mas de todos, os ricos inclusive, como tão bem ressaltou André Lara Resende no Valor de 28/1/2011.

Vai ficando cada vez mais evidente, portanto, o real significado da adesão do establishment à cor verde para caracterizar sua estratégia de crescimento. A ruptura com o marrom – do aquecimento global ao estresse hídrico, passando pela erosão da biodiversidade – engendra uma infinidade de novas oportunidades de negócios e de novos mercados, que devem ser aproveitados desde que isto não promova ou incentive o debate público sobre a velha questão das desigualdades.

Daí porque é errado identificar com a cor verde o entendimento científico de que a sustentabilidade do desenvolvimento é incompatível com a perenidade do crescimento econômico. Aliás, as contribuições teóricas de Kenneth Boulding (1910-1993), Nicholas Georgescu-Roegen (1906-1994) e Herman Daly (1938-) jamais combinaram com o verde, pois essa é a cor de uma pequena parte da biosfera, que contém muito mais do azul marinho dos oceanos e do azul claro da abóboda celeste. Por isso, só poderá ser turquesa a cor simbólica do crescimento que abrirá o caminho para a sustentabilidade.

* José Eli da Veiga é professor da pós-graduação do Instituto de Relações Internacionais da USP (IRI-USP) e do mestrado profissional em Sustentabilidade do Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ).

** Publicado originalmente pelo jornal Valor e retirado do site IHU On-Line.