Conselho de Segurança da ONU ouviu argumentos de que a mudança climática é uma questão de segurança e paz em escala global. Mas não foi capaz de adotar uma decisão a esse respeito. O fato é que se tornaram fatores associados à segurança coletiva global.
Ao mesmo tempo, a FAO, o braço agrícola da ONU, convocou uma reunião de emergência para o próximo dia 25, para discutir socorro para duas regiões ao sul da Somália e uma ampla faixa do leste da África, incluindo Quênia e Etiópia, declaradas áreas de emergência alimentar. Estas regiões estão enfrentando a maior crise de fome dos últimos 20 anos, com 3,7 milhões de pessoas enfrentando o risco de morte por inanição. Elas estão passando por um período muito longo e agudo de seca.
É certo que a mudança climática, ou pelo menos as anomalias climáticas associadas a El Niño, tem um papel importante nessa nova onda de fome que assola uma parte da África. A seca já é em si um fator climático decisivo neste caso. A agricultura africana depende muito das chuvas sazonais. Além disso, o suprimento de alimentos no mercado global continua problemático e o preço dos alimentos em alta. E parte da quebra de safra e da alta de preços se explica por fatores climáticos. A produção da Rússia, do Meio-Oeste do EUA e da China foi afetada por fenômenos climáticos. Na Rússia, foi a seca de 2010. No EUA, enchentes este ano. Na China, enchentes, seguidas de severas secas. A FAO já alertou que o preço dos alimentos ficará em patamares elevados por muito tempo.
Outros fatores também contribuem para essa tragédia, pelo lado da segurança alimentar global. Segundo o Valor Econômico, economistas da University Purdue, no EUA, mostraram em estudo que:
“O atual período de estoques apertados e os preços relativamente altos deverão continuar nos próximos um ou dois anos.”
Para os autores desse estudo, “no fim das contas, a questão não é apenas se as ofertas mundiais podem acompanhar os recentes aumentos de demanda, mas se poderão manter o ritmo do crescimento da demanda ao longo do tempo”. Os preços dos alimentos subiram 39% nos últimos 12 meses, segundo a matéria, usando dados da FAO.
Os autores do estudo mencionado pelo Valor indicaram também a produção de etanol no cinturão do milho no EUA e a demanda por alimentos da China, como fatores mais específicos afetando os preços dos alimentos este ano. De fato, pela primeira vez, este ano, o uso de milho para etanol superou o uso para produção alimentar, que sempre foi o principal. Mas a elevação da demanda chinesa está diretamente ligada à redução da disponibilidade interna por causa dos fatores climáticos.
Por isso Achim Steiner, diretor executivo do PNUMA, o programa ambiental da ONU, disse ao Conselho de Segurança que a fome e a elevação do nível do mar são ameaças à paz e à segurança globais.
O alto preço dos alimentos e a fome têm relação direta mesmo com a instabilidade política, como causa e como efeito. Na Somália, anos de conflito e guerra civil produziram um estado calamitoso, especialmente no Sul. Desde janeiro, quase 150 mil somalis fugiram dessas áreas, buscando abrigo no Quênia e na Etiópia, apenas agravando os problemas locais de segurança alimentar. Muitas crianças morreram no trajeto.
Já no Norte da África e no Oriente Médio, o alto preço dos alimentos foi um dos ingredientes das revoltas que ainda abalam Egito, Tunísia, Líbia, Marrocos e outros países.
A insegurança alimentar tem a ver, também, com profundos e históricos desequilíbrios distributivos internos e globais, como Amartya Sen já mostrava há três décadas, em seu excelente estudo sobre a seca e a morte por inanição na região do Sahel. Os setores mais ricos da sociedade consomem além da conta, os mais pobres não conseguem pagar e às vezes sequer ter acesso aos produtos alimentares.
Sen mostrou como essa desigualdade distributiva operava internamente. Hoje está claro que o aumento do bem-estar em regiões emergentes (China, Brasil, Índia) mais o aumento do consumo nos países ricos fazem com que tanto a produção doméstica seja consumida em maior quantidade, reduzindo os excedentes exportáveis, como esses países se tornem os principais importadores desse excedente. Como têm mais renda real disponível, importam quase toda a produção alimentar em circulação no mercado mundial, deixando praticamente nada para os mais pobres, que têm menor poder de compra.
Esse problema distributivo não tem a ver com escolhas morais. É estrutural: a renda cresce, as pessoas saem do território da pobreza, passam a consumir mais; as pessoas em estratos superiores fazem upgrade de suas cestas alimentares e demandam mais alimentos nas faixas superiores de preços. Cria-se essa cadeia diferenciada de consumo de pessoas que têm óbvio direito ao alimento produzido domesticamente e importado que podem comprar. Com seu consumo estão estimulando investimentos e geração de emprego e renda dentro e fora de seus países. Esse movimento, em si positivo, tem como efeito colateral totalmente involuntário, em um contexto de limites físicos, climáticos e econômicos à produção agrícola, o aumento dos preços e a redução da oferta de alimentos acessíveis aos mais pobres.
O Conselho de Segurança não conseguiu aprovar mais que uma declaração quase simbólica, de “preocupação” com o possível risco que a mudança climática representa para a segurança e a paz mundiais.
Mas é evidente, a olho nu, que essa ameaça é concreta e já há eventos resultantes dela. É impossível imaginar, por exemplo, a pacificação da África, sem que o problema da pobreza e da fome aguda sejam enfrentados. E esse enfrentamento demanda envolvimento e recursos dos grandes atores globais, ricos e emergentes. Está claro que o agravamento das condições climáticas afetará a produção agrícola global e imporá um quadro de insegura alimentar com alto poder de gerar conflitos disseminados. Sem falar dos imigrantes climáticos e fugitivos da fome e dos conflitos, que passam a representar um problema social e político nos países receptores.
A agenda climática é indissociável da agenda da pobreza e da fome. Todas elas são uma óbvia questão de bem-estar e de segurança global.
* Para ouvir o comentário do autor na rádio CBN clique aqui.
** Publicado originalmente no site Ecopolítica.