Política Pública

Remessas causam desvantagens às mulheres

Por Ivet González, da IPS – 

Havana, Cuba, 18/12/2016 – No jargão das ruas de Cuba, as pessoas com fé deixaram de ser aquelas crentes em poderes divinos. Agora são as que têm família no exterior e costumam ser vistas como “privilegiadas” por receberem remessas que aliviam a dura economia doméstica. Aos 67 anos, Ramona Hernández aparenta pertencer ao segmento da população, de 11,2 milhões de habitantes, que melhorou sua situação econômica graças à ajuda enviada por familiares que formam a chamada diáspora, em dinheiro ou produtos, como roupas, eletrodomésticos, alimentos, créditos para celular e remédios.

Duas mulheres preparam produtos para venda em um pequeno local dentro de um prédio em Havana. O envio de dinheiro, ou produtos, por familiares do exterior fizeram prosperar esses negócios privados em Cuba. Foto: Jorge Luis Baños/IPS

 

Porém, Hernández vive em um humilde apartamento na capital cubana, de paredes descascadas, portas e janelas desconjuntadas e teto em mau estado. Durante sua vida profissional, teve diversos empregos como enfermeira e outros ofícios, mas não acumulou a quantidade de anos exigida por lei para receber uma aposentadoria. “O que minha família envia é minha única renda e basta apenas para comer, se for bem distribuída”, disse à IPS esta mulher que sozinha cuida da mãe, de 81 anos.

“Minha mãe estava na Espanha até três anos atrás, quando adoeceu e minha filha não pôde cuidar dela. A decisão foi mandá-la para casa”, explicou Hernández. “Se não recebesse essa ajuda, estaria muito pior. Nem todos que emigraram têm a mesma sorte”, prosseguiu. E deu como exemplo o caso de sua filha única, que morou em Barcelona por 15 anos e perdeu o emprego devido à crise que atinge a Espanha desde 2012.

“Ela tem dois filhos e só encontra trabalho temporário. Seu marido é o único que manteve o emprego. Minha filha faz um grande esforço para me enviar 50 euros mensais e eu também faço uma coisa ou outra (trabalho informal) em casa, porque tenho que cuidar sozinha de uma pessoa doente”, contou Hernández.

A história de pobreza e vulnerabilidade dessa mulher representa um lado pouco abordado dentro do complexo fenômeno das remessas em Cuba, que hoje costuma ser associado aos casos das famílias emigradas com grandes recursos que financiam e coadministram muitos dos exitosos e crescentes negócios privados no país.

“A maioria das pesquisas econômicas não levam em conta que a quantidade de dinheiro enviada pelos migrantes, bem como a maneira como se envia e como é utilizada, estão condicionadas também pela economia da família e das relações de poder”, pontuou à IPS a economista Blanca Munster. Para mudar essa realidade, ela estudou os nós entre remessas, pobreza e gênero na atual sociedade cubana.

Assim, essa pesquisadora em assuntos econômicos e de gênero abordou três assuntos pouco estudados na esfera pública e focou nas desvantagens femininas na hora de aproveitar essas rendas para conseguir um sustento próprio. Embora constituam uma importante fonte de renda para esse país com sua economia atual em crise aguda, segundo fontes especializadas, as autoridades locais não publicam dados oficiais do volume captado anualmente com remessas nem que lugar ocupam entre os setores mais importantes da economia cubana.

Uma mãe caminha com a filha, em Havana Velha, na capital de Cuba, após pegá-la na escola. Nesse país, as tarefas do cuidado estão quase exclusivamente a cargo das mulheres. Foto: Jorge Luis Baños/IPS

 

Em uma revista distribuída em Cuba e nos Estados Unidos, o economista cubano Juan Triana estima que por esse conceito entrem em Cuba entre US$ 2 bilhões e US$ 2,5 bilhões por ano. Essa quantia é obtida unicamente com a exportação de serviços médicos, que constitui o primeiro setor da economia cubana, afirmou. Outros estudos independentes realizados em Miami, onde vive a maior comunidade cubana no exterior, calcularam que esses envios alcançaram a cifra recorde de US$ 3,354 bilhões em 2015.

Esse foi o primeiro ano em que vigorou a ampliação do teto trimestral de remessas originadas nos Estados Unidos para residentes em Cuba, de US$ 500 para US$ 2 mil, em uma medida estabelecida pelo presidente Barack Obama em 17 de dezembro de 2014, dia em que os dois países anunciaram o reinício de suas relações bilaterais. Munster investigou o que ocorria nas famílias pobres e focou a situação vivida por homens e mulheres, para ir além da discussão sobre o potencial ou não das remessas para impulsionar o consumo e o investimento em Cuba.

Em 2013, a economista estudou 50 núcleos com baixa renda e receptores de ajudas externas na comunidade periurbana de Santa Fé, com população de 27.855 habitantes, assentada nessa região pesqueira e turística na costa noroeste de Havana. Como resultado, registrou que todas as famílias dependiam das remessas para sua subsistência, mas que poucas conseguiram com essa ajuda manter um sustento próprio, devido a diversos fatores como baixa quantia enviada e a alta prevalência nas famílias de dependentes com crianças pequenas, estudantes, idosos e doentes.

Uma funcionária da limpeza e outra da recepção em um órgão do governo, na capital de Cuba. Foto: Jorge Luis Baños/IPS

 

“As mulheres vivem situações de empoderamento e desempoderamento nas famílias pobres receptoras de remessas”, apontou Munster. “Receber e administrar os envios não significa decidir sobre seu uso, o que, com frequência, é definido principalmente por quem os envia”, explicou. Em seu trabalho, descobriu que as mulheres das famílias estudadas em Santa Fé sofriam mais do que os homens o peso da escassez de recursos, por isso as remessas melhoravam as condições de seu trabalho doméstico.

Por outro lado, muitas recebiam dinheiro de seus familiares emigrados para poderem se concentrar em cuidar de idosos, crianças e doentes, reforçando assim os papéis tradicionais femininos, bem como sua reconcentração no trabalho reprodutivo e não remunerado. Munster também observou que alguns homens e mulheres fizeram pequenos investimentos produtivos, conseguindo empreendimentos mais lucrativos, como a criação de animais ou o serviço de taxista, mas as mulheres realizaram negócios tradicionalmente femininos, como salão de cabelereiro e venda de audiovisuais, roupas e acessórios, detalhou.

Segundo a economista, entre outros fatores limitantes, as mulheres carecem de “uma cultura empresarial e tributária prévia, porque sempre trabalharam no setor dos serviços estatais ou em casa. As remessas costumam substituir a renda com a qual elas não contam, ou resultam ser insignificantes para atender suas necessidades básicas”, assegurou.

Esse é o caso de Fabiana Mora, operária de 33 anos que trabalha no controle de qualidade de uma empresa com capital estrangeiro, em Havana. Esporadicamente recebe dinheiro, remédios e roupas de seu pai que vive nos Estados Unidos. “Fico muito contente cada vez que recebo algo”, contou à IPS. “A remessa é uma ajuda mas não dá para cobrir todas as necessidades. Também tenho meu salário e o que ganho vendendo telefone celular e roupas”, contou Fabiana. Seu pai lhe envia com alguma frequência esse tipo de artigos, para que ela ganhe dinheiro com a venda de roupa importada, apesar de esse comércio ser proibido para a iniciativa privada.

Permitidas pelas autoridades locais nos primeiros anos da crise que começou em 1991, as remessas têm, desde então, um importante papel na economia familiar e nacional, embora seu comportamento dependa do estado das relações entre Cuba e Estados Unidos, onde vivem mais de dois milhões de pessoas nascidas na ilha e seus descendentes. Envolverde/IPS