Por Maurício Angelo, do Inesc –
Entre 2012 e 2017, o PIB per capita da China cresceu 48% enquanto o brasileiro ficou estagnado. Esse crescimento potencializa a demanda chinesa por soja, milho e carne, entre outros produtos em que a China é um dos principais importadores, e aumenta o interesse estratégico em terras cultiváveis. Em 2016, o Brasil exportou US$ 37,4 bilhões em produtos para a China.
Para Song Yang, cônsul geral da China em São Paulo, “a China e o Brasil são altamente complementares”. A capacidade brasileira de entregar uma oferta estável de produtos em que a China tem escassez – como soja e produtos lácteos – faz com que os dois países sejam “irmãos gêmeos”. Na visão dos chineses, claro.
Em um investimento importante anunciado no fim de 2017, na esteira das várias aquisições de empresas brasileiras por chineses, o grupo chinês Citic Agri Fund Management comprou a operação de sementes de milho da Dow AgroSciences Sementes e Biotecnologia Brasil por US$ 1,1 bilhão.
A nova empresa, rebatizada de LP Sementes, já surge com cerca de 20% do mercado nacional de sementes de milho – terceira no ranking – e com planos ambiciosos para ir além. A Yuan LongPing High-tech Agriculture – subsidiária do Citic Agri Fund – é a líder de mercado de sementes na China e líder global de sementes de arroz híbrido. Com a compra, terá acesso total ao banco de germoplasma de milho brasileiro e à marca Morgan.
Os planos de expansão incluem a busca de novos mercados na América Latina e a promessa de trazer sementes de arroz híbrido para o Brasil. O gerente geral do fundo chinês, Shi Liang, não fez rodeios: “no Brasil, desejamos investir cada vez mais na biotecnologia, e estamos apenas no começo”, declarou. Hoje, a China já é o maior importador dos produtos agrícolas brasileiros, com 24,5% do total.
Em 2016, a Hunan Dakang Pasture Farming, unidade do grupo chinês Shanghai Pengxin Group, investiu cerca de US$ 200 milhões na aquisição de 57% das ações da trading e processadora de grãos brasileira Fiagril Ltda. O investimento tem como principal interesse a área de soja e milho e está localizado em Lucas do Rio Verde, Mato Grosso. “Isso marca a estratégia chinesa de compra de tradings menores no exterior com vistas a ter maior controle sobre o escoamento de produtos agrícolas, sobretudo grãos, para a China”, afirma o relatório “Investimentos Chineses no Brasil 2016” do Conselho Empresarial Brasil-China.
A soja brasileira, outro expoente do segmento, alcançou 50,9 milhões de toneladas exportadas para a China no acumulado de 2017, alta de 33,3% em relação a 2016. Em valores, a soja gerou receita de US$ 25,718 bilhões, alta de 34,1% em relação a 2016.
O Brasil é responsável por cerca de 60% das importações totais de soja pela China, o maior importador global do produto. No total, a safra 2016/2017 de soja brasileira chegou a 114 milhões de toneladas. Em um contexto mais amplo, o embarque total do agronegócio brasileiro para a China aumentou expressivos 577% de 2005 a 2016. Em nenhum outro mercado agrícola no qual o Brasil tem relevância como exportador há um grau de dependência tão elevado.
A carne bovina acompanha. Em 2016, a China importou 736.576 toneladas de carne – atrás apenas de Hong Kong – um total de 1,75 bilhão de dólares. Com um consumo ainda módico frente a outros países, o chinês come hoje 4,07 quilos de carne por habitante/ano. Mas a tendência é de inequívoco crescimento: entre os anos 2000 e 2017 a alta acumulada é de 39,3% ou cerca de 2,0% ao ano, em média. No total, o consumo per capita de carne chinês ultrapassou os 50 quilos anuais.
E o crescimento da população urbana no país, de cerca de 20 milhões de pessoas ao ano, reforça a tendência, já que moradores de cidades tendem a comer mais carne.
Não bastasse isso, a Ásia emergente está comendo mais carne de frango e de porco, e a soja que confere músculos às aves e suínos se espalhou pelas fazendas do planeta em ritmo mais rápido que o de qualquer outra safra, cobrindo área 28% maior do que a ocupada uma década atrás.
Nos próximos 10 anos, a soja terá área plantada superior a um bilhão de hectares (10 milhões de quilômetros quadrados) em todo o mundo, com expansão maior que a cevada, milho, arroz, sorgo e trigo, de acordo com projeções do Departamento da Agricultura dos Estados Unidos, mostra reportagem especial do Financial Times.
O jornal lembra que o triunfo da soja depende da China. As importações da safra pelo país triplicaram nos 10 últimos anos, para um total estimado em 93 milhões de toneladas no ano que vem, o equivalente a 66 quilos de soja por habitante/ano. Projeções mostram que esse número pode chegar a 121 milhões de toneladas de soja ao ano, dentro de uma década, mais de 30% acima do total atual.
Com o custo doméstico de produção de soja muito alto, a China produz somente 15 milhões de toneladas anuais. Sabiamente, a China proíbe o uso de soja geneticamente modificada em alimentos de consumo diário. Mas a restrição não se aplica à soja usada para ração animal e para a produção de óleo de cozinha, e por isso os insumos usados nessas atividades hoje vêm principalmente de safras estrangeiras com traços alterados por bioengenharia – do qual o Brasil é disparado o principal fornecedor.
Soja, carne e minério de ferro são os principais vetores de expansão da fronteira agromineral, desmatamento, conflitos fundiários e violência no campo, especialmente nos estados da Amazônia Legal e no Matopiba (fronteira entre Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia).
O rebanho bovino na Amazônia Legal saltou de 37 milhões de cabeças em 1995 – equivalente a 23% do total nacional – para 85 milhões em 2016, cerca de 40%. A pecuária para a criação de gado é a atividade que mais contribui para o desmatamento na Amazônia, ocupando 65% da área desmatada, afirma um estudo recente do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia).
Em 2016, o Brasil desmatou 7.893 km2 na Amazônia e, no ano anterior, 6.207 km2. A taxa ainda é muito mais alta do que a meta proposta pelo próprio governo, em 2009, de chegar a 3,5 mil km2 em 2020. Com isso, também fica em xeque a capacidade do país de cumprir sua parte no Acordo de Paris, compromisso global de redução de emissão de gases estufa: são mais 330 milhões de toneladas de CO2 emitidos pelo desmatamento em 2017, quando deveríamos reduzir de 36% a 39% essas emissões até 2020, em relação aos níveis de 1990.
Compra de terras por estrangeiros é ponto chave
Um fator preponderante que pode potencializar muito o apetite chinês para a produção agrícola no Brasil é a autorização da compra dessas terras por estrangeiros, hoje travado por um parecer de 2010 da Advocacia-Geral da União (AGU), que veta essas aquisições.
O governo Temer tem encaminhado um projeto que libera a compra de até 100 mil hectares de terras brasileiras por multinacionais – e esse total pode chegar a 200 mil hectares por meio de arrendamento. A expectativa era de que o projeto fosse votado ano passado, mas permanece na gaveta até o momento.
Para se ter uma ideia, 100 mil hectares correspondem a cerca de 1 mil quilômetros quadrados ou três vezes a área de uma cidade grande como Belo Horizonte. Atualmente, mais de três milhões de hectares de terras brasileiras já estão nas mãos de 20 grupos estrangeiros, uma média de 137 mil hectares por grupo, segundo dados da ONG canadense Grain.
Para Charles Tang, presidente da Câmara Brasil China, há grande interesse de investidores orientais pela compra de terras no Brasil para produção agrícola. Segundo ele, os chineses poderiam já ter investido cerca de 90 bilhões de dólares no país se fossem liberados para comprar terras. Entretanto, mesmo que a legislação permaneça como está, com restrições – muitas vezes burladas – o interesse dos chineses pelo agronegócio brasileiro é crescente e não deve diminuir. “Eles têm muito acesso a capital e mais de 1,3 bilhão de bocas para alimentar”, lembrou Tang, em referência à população chinesa.
Ao contrário do que pensa o senso comum, a China tem uma disponibilidade de terras aráveis e de recursos hídricos bem abaixo da média mundial, lembra o relatório “O Agronegócio Brasileiro: China e Comércio Internacional”, da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Indicando cerca de 9,6 milhões de km de área, o censo mais recente das terras aráveis na China registrou cerca de 135,2 milhões de hectares de terras agrícolas, 14,3% do território nacional. Contudo, subtraindo-se as áreas reservadas para a restituição de florestas e pastagens, bem como os terrenos considerados impróprios (poluídos) para o cultivo, a extensão das terras realmente agricultáveis fica apenas pouco acima do nível mínimo defendido pelo governo, 120 milhões de hectares, o que equivale a menos de 0,1 hectare per capita, ou 40% da média mundial.
Esse percentual continua diminuindo devido à expansão rápida da urbanização, à degradação do solo, ao uso excessivo de fertilizantes, bem como por conta dos inúmeros problemas ambientais, tais como: inundações, erosão do solo e desertificação. Além disso, a população da China continuará a crescer até cerca de 2030. Com isso, estima-se que, em 2050, a demanda total de terras aráveis supere a oferta em mais de 12%. Além das restrições de terras próprias para o cultivo, a escassez e a poluição da água também podem limitar a produção de grãos no futuro.
Apesar de a China ser dotada da quarta maior oferta total de recursos hídricos no mundo, a quantidade per capita era de 2.059m em 2013, ou um quarto da média global. De acordo com a World Wildlife Fund (WWF), 13% dos lagos da China desapareceram nos últimos 40 anos, assim como metade de suas zonas úmidas costeiras. Entre as principais causas, podem-se citar: a grande demanda gerada pela agricultura, o processo de industrialização e urbanização, a distribuição desigual dos recursos hídricos e o alto nível de poluentes depostos nas reservas hídricas.
A falta de água já afeta seriamente a produção de grãos, em especial nas regiões áridas e semiáridas da planície do norte da China, área potencial para a expansão da produção de grãos no futuro. Além da escassez, problemas com o sistema de irrigação poderão complicar a capacidade produtiva do agronegócio, pois a China usa tanto os rios como os aquíferos subterrâneos para irrigar suas plantações. Metade das terras cultivadas é irrigada e produz cerca de 75% dos cereais e mais de 90% da produção de algodão, de frutas, de legumes e de outros produtos agrícolas. O Banco Mundial, no entanto, estima que, ao ritmo atual de exploração, os aquíferos no norte do país podem secar em menos de 30 anos.
As consequências disso e a busca chinesa por terras e recursos fora do seu país podem ser trágicas também para o Brasil. Por exemplo, na Amazônia brasileira, cada quilômetro de estrada legal aberta é frequentemente acompanhado por três quilômetros de estradas ilegais. Esse fluxo intensificado e mais rápido, por si só, já traz consequências terríveis para a flora e fauna nativas, além, claro, dos impactos socioambientais para as cidades e comunidades atingidas. Estima-se que o desmatamento da Amazônia aumentará 950 mil hectares até 2032 devido aos projetos rodoviários já em andamento.
Maurício Angelo é jornalista e escritor e participa do Inesc – Instituto de Estudos Socioeconômicos. (#Envolverde)