Dados recentes revelam que, na maioria das grandes metrópoles brasileiras, um maior número de pessoas leva mais tempo em seus deslocamentos cotidianos. Tem se tornado um martírio enfrentar longas distâncias, engarrafamentos e as constantes panes do sistema público de transporte. Uma verdadeira via-crúcis. Na região metropolitana de Belo Horizonte, por exemplo, o percentual de pessoas que levavam mais de uma hora no trajeto casa trabalho passou de 13,5%, em 2001, para 16,5%, em 2008. Em São Paulo, o recorde de congestionamento, que foi batido por duas vezes no mesmo dia em 2009, chegou a 294 km. Para aqueles que utilizam o transporte público, entre todas essas dificuldades, soma-se ainda o alto preço das tarifas, complicador maior no caso de mercados de trabalhos organizados na escala metropolitana e que exigem deslocamentos cada vez mais distantes, baldeações e trocas intermunicipais. A situação é tão grave, que nos permite falar em uma crise da mobilidade. Crise resultante, sobretudo, da opção pelo modo de transporte individual em detrimento das formas coletivas de deslocamento.
Ao mesmo tempo, tem ocorrido no Brasil, nos últimos anos, um expressivo aumento no número de automóveis. O ritmo de crescimento dos carros supera o da população na maioria das 15 metrópoles brasileiras, onde a população cresceu por volta de 10,7% e o número de automóveis aumentou em 66% entre 2001 e 2010, resultado de um aumento em torno de 920 mil carros a cada ano.
Nas metrópoles temos hoje 3,3 habitantes para cada veículo de passeio, o que corresponde aproximadamente a um veículo para cada domicílio. Algumas delas, porém, apresentam o índice de habitantes/veículos ainda menor. Como são os casos de Curitiba, com 2,2 hab/veículo, Campinas com 2,3 hab/veículo, Florianópolis e São Paulo, com 2,5 hab/veículo cada uma. Outras metrópoles, sentindo o reflexo do crescimento expressivo no número de automóveis, apresentam o índice bem próximo a esses já mencionadas. Como são os casos de Belo Horizonte, Brasília e Goiânia. Na metrópole mineira o índice de habitantes por veículo caiu de 5,2 para 3,1 entre 2001 e 2010, resultante de um aumento de 88,5% do número de automóveis. Em Brasília, considerando sua região de desenvolvimento integrado, no mesmo período esse aumento foi de 86,6%, enquanto sua população aumentou em 20,4%, com isso seu índice de hab/veículo passa de 4,7 para 3,2. Em Goiânia, onde o aumento no número de veículos foi de 81,5%, o índice passou de 4,4 para 3 hab/veículo.
Sabemos que a periferia das grandes metrópoles tem crescido mais do que suas áreas centrais, tendência que aponta para a constituição de um espaço urbano cada vez mais espraiado, implicando em crescentes custos e problemas logísticos para a provisão de serviços públicos de infraestrutura essenciais à vida em cidade. Perde-se também as principais vantagens de uma cidade compacta, entre elas a baixa necessidade de viagens de carro, que, por sua vez, reduz a emissão de combustível. Reduz-se o apoio aos transportes públicos, as viagens a pé e de bicicleta e, ainda, favorece o aumento das distâncias percorridas entre as residências e os locais de trabalho. Por outro lado, torna-se difícil acreditar que agências reguladoras e empresas de transporte levem o tamanho e a estrutura da cidade em consideração quando se planeja o transporte.
Estamos repetindo nesta fase do crescimento econômico brasileiro os mesmos erros cometidos desde que iniciamos, na década de 1950, a industrialização como motor de desenvolvimento: a omissão da ação planejadora do Estado em seus vários níveis de governo. Subordinamos as grandes cidades às necessidades de produção e do consumo de um bem que desencadeia processos letais da vida urbana, como bem mostrou Jane Jacobs em seu famoso livro Morte e Vida das Grandes Cidades. Quando há ações de governo, são intervenções que desconsideram a cidade em sua complexidade e seu tamanho, limitando-se a projetos e abrindo mão da função do sistema de mobilidade urbana como parte da estrutura da cidade. Nas modalidades de gestão por projeto do solo urbano, as cidades como máquinas de crescimento a serviço dos novos e antigos interesses econômicos e políticos alimentados pela acumulação urbana. No caso da mobilidade, a falta de planejamento se traduz na inexistência de bases de dados confiáveis e atualizadas sobre os fluxos de deslocamentos de pessoas e mercadorias – as chamadas pesquisas origem-destino, ferramenta fundamental de planejamento urbano.
O problema da mobilidade urbana coloca a sociedade diante de um dilema histórico. Para sustentar a trajetória virtuosa em que nos encontramos de crescimento econômico com expansão dos empregos formais, distribuição da renda com a incorporação de amplos segmentos da população historicamente marginalizados ao mercado de bens modernos – entre eles, o automóvel –, teremos que optar por realizar uma Reforma Urbana cuja realização eventualmente pode implicar na reorientação da direção e do ritmo desta trajetória de mudança. Não realizá-la, por outro lado, certamente significará que encontraremos em poucos anos o obstáculo do apagão urbano, cujas consequências serão maiores e mais graves que a diminuição do ritmo de crescimento: a consolidação exacerbada do modelo urbano brasileiro de mal estar coletivo, em razão do aprofundamento da degradação social, urbanística e ambiental das metrópoles. Na verdade representa um limite efetivo a esse crescimento na medida em que surgem sinais da perda de eficiência econômica das cidades, a resposta tem sido a realização de projetos rodoviários que submetem ainda mais a mobilidade urbana da autolocomoção das pessoas e das coisas. Se os congestionamentos aumentam, é desencadeada a construção de “rodos-anéis” em torno das cidades, cujo resultado é consolidar o irracional modelo urbano brasileiro. As vultosas obras rodoviárias fazem a felicidade real das empresas de obras públicas e das montadoras de automóveis. Também da coalisão de interesses que comanda a política macroeconômica, pois é mais um veículo para tudo acelerar e sacrificar em nome da manutenção de elevadas taxas de crescimento. A não realização da imperiosa e ainda possível Reforma Urbana neste momento, justificada pela infundada crença que o crescimento econômico vai resolver automaticamente os gargalos do apagão urbano, poderá impor pesadas perdas estruturais da capacidade produtiva das cidades suportando este crescimento.
Mais do que a perda de eficiência econômica, o colapso da mobilidade no Brasil provoca também limites à festejada diminuição das desigualdades sociais. A acessibilidade urbana precária, assegurada pelos meios de transportes coletivos e públicos ineficientes, gera efeitos contrários aos ganhos de renda obtidos pelos trabalhadores pelo aquecimento da demanda pelo emprego: na metrópole do Rio de Janeiro, ao compararmos as rendas médias de trabalhadores semelhantes em termos de escolaridade, cor, sexo e tipo de ocupação, mas moradores em áreas com fortes diferenças de mobilidade urbana, a diferença pode chegar a 22,8%! A razão está no fato de que, nesta e nas outras metrópoles brasileiras, há uma forte concentração de oferta de trabalho nas áreas centrais, ao mesmo tempo em que observamos o crescimento da população moradora nas periferias. A disjunção entre espaços do emprego e da moradia é, sem dúvida nenhuma, incentivada e agravada pela autolocomoção. Outra faceta deste problema é o crescente tempo despendido pelos moradores das metrópoles em seus deslocamentos diários, fruto da desregulação e abandono do sistema de transportes coletivos e públicos. Ademais, a difusão dos assim chamados “transportes alternativos”, como vans e moto-táxis, nada mais é que a outra face da capitulação das autoridades públicas ao modelo urbano resultante da mobilidade fundada na autolocomoção.
Portanto, a manutenção da trajetória virtuosa de crescimento que entramos depende da capacidade da sociedade em optar pelos custos imediatos da mudança de modelo urbano brasileiro e, consequentemente, de construir um projeto de reforma das nossas cidades. A transformação do padrão de mobilidade urbana é, sem dúvida, um dos fronts mais importante da luta por este projeto. Teremos, por exemplo, capacidade e coragem de aceitar a instituição de pedágios nas áreas centrais das metrópoles? Estaremos dispostos a empreender ações contra a realização das vultosas e ineficientes obras de infraestrutura que incentivam a autolocomoção nas metrópoles?
* Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro é Coordenador do Observatório das Metrópoles – IPPUR/UFRJ. Juciano Martins Rodrigues é pesquisador do Observatório das Metrópoles – IPPUR/UFRJ
** Uma versão deste artigo foi publicada no Caderno Pensar, jornal O Estado de Minas, no dia 12 de junho de 2011.
*** Publicado originalmente no Observatório das Cidades e retirado do site Mercado Ético.