A interatividade da internet, sua aparente anarquia e desgoverno acabaram por inviabilizar regimes totalitários ao estilo Orwell. O mundo interligado torna quase impossível enganar poucos durante algum tempo, o que dirá de muitos durante um longo período.
Quando li 1984, de George Orwell, faltava pouco para o título do livro, mas muita gente achava que o autor, um comunista de carteirinha e um pessimista idem, só tinha antecipado um pouco a data sobre a ideia cáustica e terrível que fazia do nosso futuro. Um futuro dominado pela tecnologia, vigiado por câmeras em toda a parte e controlado por um Estado autoritário que tudo via e ouvia. Não haveria privacidade alguma, o sexo sem fins de procriação seria considerado crime grave e os cidadãos viveriam uma opressão só possível graças a um regime de quase lavagem cerebral coletiva.
Passados 26 anos da data emblemática do livro e mais de 60 da época em que o inglês Eric Arthur Blair (Orwell era pseudônimo) escreveu pouco antes de morrer a sua sombria e profética obra-prima, vivemos num mundo em que uma das frases mais lidas em diversas línguas é “Sorria, você está sendo filmado”. Câmeras vigiam praças, estradas, esquinas, lojas, escritórios, garagens e diversos ambientes. Isso se ficarmos apenas pelas aparentes, já que das ocultas é melhor nem falar, não vá a paranoia tecer das suas. Além disso, um dos programas mais famosos replicados em todo o mundo transformou o Big Brother, o principal personagem de 1984, num popular programa de televisão que de literatura só tem mesmo uma referência ao passado do apresentador da versão brasileira.
De fato, pode-se dizer que parte do que Orwell anteviu estava mesmo certo. É verdade também que a privacidade das pessoas é hoje um artigo cada vez mais raro e que, a cada dia que passa, fica mais difícil manter em segredo qualquer assunto por menor que seja. Mas as semelhanças param por aí. Na maioria das vezes, são as próprias pessoas que fazem questão de expor suas vidas, seja em reality shows de toda a sorte, em blogs que se tornaram verdadeiros diários abertos à bisbilhotice virtual; seja nas redes sociais ou até mesmo por meio de webcams ligadas dentro de casa exibindo cada minuto de suas existências.
A internet sem dono, com diversos pontos interligados e onde a informação trafega não por um comando central, mas buscando novas conexões sempre que algum caminho é interrompido, foi o começo do fim para a imagem orwelliana de mundo – uma realidade onde o aparato de comunicação era unilateral, vendo, ouvindo e falando apenas o que o Ministério da Verdade queria. A interatividade da internet, sua aparente anarquia e desgoverno acabaram por inviabilizar regimes totalitários ao estilo Orwell. O mundo interligado torna quase impossível enganar poucos durante algum tempo, o que dirá de muitos durante um longo período.
Mas isso era apenas o começo. O acesso ilimitado e rápido a todas as fontes de informação está ajudando a moldar uma sociedade baseada na transparência. Governança corporativa tornou-se um termo importante não só nas empresas, mas também nos governos e em organismos não governamentais. Caminhamos cada vez mais para uma sociedade que exige coerência na execução das políticas baseadas em princípios humanitários e transparência na prestação de contas. Mesmo assim, o fantasma de Orwell e seu horrível futuro descrito em 1984 ainda assustavam muita gente, sobretudo aqueles mais assombrados com teorias conspiratórias.
Essas nuvens, porém, dissiparam-se completamente com o recente fenômeno Julien Assange, o australiano do Wikileaks que praticamente sozinho desafiou o maior império do planeta, pondo a nu as vísceras da sua correspondência diplomática. Cyberterrorista ou um David Paladino da Verdade contra o Golias da Hipocrisia Mundial? Na verdade, pouco importa. O que, de fato é importante em todo esse episódio é que ele é um marco na história da relação dos homens com seus governantes. Um momento em que fica claro que as megaestruturas corporativas, sejam elas empresas ou governos, não passam de tigres de papel compostos por gente como nós – ou melhor, pior do que nós.
E é aí que percebemos o quanto Orwell estava errado. Ao invés de um governo que ouve e vê a todos esmagando os direitos individuais de quem não reza conforme a cartilha do Grande Irmão, temos, de um lado, uma multidão de microcelebridades expondo de livre vontade a sua privacidade e, de outro, governos impotentes diante da ação de pequenas organizações que, pulverizadas por uma rede mundial, expõem para todos as mazelas das autoridades, tal qual um implacável Big Brother que tudo vê e – pior – tudo revela. Descanse em paz, Eric Arthur Blair…
* Carlos Vieira é jornalista, colunista do Economia Interativa.
** Publicado originalmente no site Economia Interativa.