Por Neuza Árbocz, especial para a Envolverde –
O que ocorreria com um agressor que esfaqueasse Lula ou Haddad, em meio a uma passeata petista?
Uma onda de revolta e outra de medo assolam os corações brasileiros.
A primeira corrente toma pessoas cansadas de serem roubadas, de verem os bens públicos e a riqueza gerada pelo trabalho árduo de todos se dissipar em propinas, desvios para contas no exterior, maracutaias e conluios inconfessáveis. O sangue ferve e querem reagir, impedir que isto siga acontecendo. Precisam de um foco para toda sua raiva.
Sentem-se representadas por um candidato que demonstra a mesma energia para a luta, para “pôr ordem na casa, custe o que custar”. Que fala o que pensa e sente, sem ponderações. Preferem sua rudeza, por ser franca e transparente, pois cansaram dos que fingem personagens que jamais serão. Embora seu salvador se assemelhe, em vários aspectos, ao emblemático “caçador de marajás” que o Brasil conheceu nos anos 90 e que brincou com a economia, a ponto de sequestrar o dinheiro de contas particulares.
A segunda domina pessoas que sabem que violência gera violência; que em terras de dente por dente, olho por olho, todos terminam cegos e banguelas. Revivem em seu interior lições cruéis e sangrentas da história antiga, e nem tão antiga assim. Temem perder liberdades conquistadas e retrocessos à opressão aos diferentes.
A nação está partida, fragmentada. E sua alma aflita.
O candidato da bala assume que ensinou aos filhos a atirar desde os 5 anos – pois não quer uma nação de covardes, onde a ordem de “não reagir nunca” deixa caminho livre para a bandidagem fazer a festa. Ao ser pressionado sobre o quanto esta prática contraria o Estatuto da Criança e Adolescente, ele se exaspera ao lembrar de atrocidades cometidas por jovens de 16 e 17 anos e que escapam com pouca punição, justamente por causa deste código. Com a cabeça quente, sugere que se rasgue e jogue fora toda esta lei aprovada em 1990 para defender a inocência e a infância de trabalho forçado, exploração sexual e outros tantos abusos.
O outro candidato, oriundo de um grupo que ocupou os mais altos cargos da nação por quase 14 anos e foi a esperança de um Brasil mais próspero e sem miséria, com real inclusão daqueles tradicionalmente massacrados e pilhados em seus direitos mais básicos, apresenta-se como a salvação a esse extremismo.
De histórico humanitário, professor e ministro que expandiu a educação universitária pelo Brasil, seria previsível que ele arrebanha-se a preferência da maioria. Contudo, pertence a um partido protagonista de um dos maiores escândalos de corrupção do Brasil e que recusa-se a olhar para seus próprios erros. Continua a narrativa de vítima de perseguição – que existe, mas nem por isso, invalida as provas reunidas do mensalão, do petrolão, dos milhões dados ao seu líder em troca de palestras jamais proferidas, da promiscuidade com empreiteiras e grandes corporações, das remessas generosas a países dominados por ditadores que negam direitos civis e humanos a seus governados.
Sua turma faz de tudo para reassumir o poder e, nesta obstinação, ignora que o medo de sua volta seja tão intenso, a ponto de levar à escolha de um ‘herói’, que muitas vezes simplifica a realidade a cenários de bang-bang.
A vida não é simples assim. O mal não é sempre mau, nem ficou mau de propósito, por prazer. O bem não é sempre bom – e ao querer sê-lo, acaba, não raro, por provocar sofrimentos tão profundos que justifica a velha sabedoria de que de boas intenções o inferno está cheio.
Liderar uma nação requer uma percepção refinada do mundo, capaz de alcançar os prismas das inúmeras camadas de população presentes no território de que se dispõe a zelar. A compreensão necessária tem que ir além do óbvio e enxergar as complexas teias que sustentam a vida ao seu redor. Distinguir que são tão emaranhadas entre si, a ponto da ação sobre uma pessoa, uma espécie ou um bioma repercutir sobre as demais. Ser um ou uma presidente é ter uma responsabilidade que se estende, de fato, sobre todas as paisagens em seu país. Nelas, deveriam vigorar ciclos de consumo e produção que mantivessem as águas limpas, os solos férteis e o ar puro, livres de tóxicos e poluentes e preservassem a biodiversidade para as futuras gerações.
Ter condições de governar exige conciliar interesses diversos e apaziguar conflitos. Garantir condições de convívio em harmonia entre diferentes ao zelar por bordas claras entre as vontades e as liberdades de cada um. Quando a população tiver maturidade para reconhecer e introjetar estes limites poderá, idealmente, se auto-governar e dispensar figuras que a represente.
Enquanto isso não ocorre, governa bem quem governa para todos e todas, e não apenas para seus preferidos. Quem contém seus próprios impulsos, pelo bem coletivo.
É de suma importância que um dirigente esteja ciente da sua influência sobre os demais. Seus gostos e suas ações podem inspirar atitudes não só iguais, mas exacerbadas entre seus admiradores. Como age e o que faz contam tanto quanto suas falas. Após excessos, pode ser tarde para pedir para que não os cometam.
Ironicamente, ataques covardes ocorreram pelas cidades brasileiras inspiradas no candidato que defende a valentia, a ponto deste fazer um alerta de que o voto de adeptos à violência não o interessa.
Seria por esta razão que, por mais que apoiem o discurso da auto-defesa, os seguidores de Bolsonaro tenham respeitado os policiais que imobilizaram o homem que esfaqueou o seu candidato, em 6 de setembro, durante uma passeata? Frente a todas as câmeras que acompanhavam o evento, resistiram ao ímpeto de vingança com as próprias mãos e se submeteram ao regime legal, que leva um criminoso para avaliação e sentença de um juiz. O fato é que não foram, nesta hora, os valentões inescrupulosos que tantos afirmam serem.
O que teria ocorrido se o atentado acontecesse com o lado opositor? O grupo que elegeu para si a cor vermelha se curvaria à lei, deixaria a Polícia Federal cuidar do prisioneiro ou cederia ao impulso de atacá-lo, como ocorreu com o empresário Carlos Alberto Bettoni em abril deste ano chutado na direção de carros em movimento em frente ao Instituto Lula, ao xingar apoiadores do ex-presidente? Até onde os levaria o culto aos seus dirigentes diante de uma agressão muito mais grave?
O Brasil espera, há tempos, uma auto-crítica desta base. Um olhar desapegado sobre os descalabros de muitos de seus membros-chave. Esta neutralidade poderá sobrepor a paixão que parece dominar seus seguidores? Há coragem entre eles para tanto?
Quais dos grupos constitui o maior perigo para o Brasil?
Seriam os homens das armas, formados, em tese, na honra de arriscar sua própria pele em defesa da nação, capazes de, mais uma vez, anular a privacidade e a integridade física dos considerados suspeitos, como ocorreu durante o regime militar de 1964? Ou saberiam eles, agora, combater abusos e crimes, sem usar, eles próprios, métodos abusivos?
Refugia-se deste mar de incertezas, um terceiro grupo. Sem revolta e sem medo. Os nulos. Recebem condenações e pressões de ambos os lados. Mas ficam firmes em sua escolha de não escolher. Buscam uma consciência tranquila de não contribuir para futuros que desaprovam. De nada adianta lhes apontarem o dedo se o grupo que ganhar estas eleições presidenciais tomar decisões desastrosas. Quem saberia o que fariam os perdedores se estivessem no poder?
Não votar agora não significa, automaticamente, passividade egóica ou ignorância. O isentão – como costumam rotular – pode ser uma pessoa atenta e engajada na defesa de direitos universais e, sem enrolação alguma ou mordomia gananciosa, cumpridora caxias de seus deveres cívicos. Para estes, sua recusa em votar para um ou para outro almeja fazer com que, ao menos, o ganhador do pleito saiba exatamente quantas pessoas endossam sua postura, ou a de seu partido, e evitar que se empolgue com ‘x’ milhões de votos para validar seus quereres.
Ideia interessante se alcançasse expressividade. Afinal, que orgulho teria alguém escolhido por apenas 20 ou 30% do eleitorado total?
Tenham a posição que tiver, as três vertentes, dissolver o ódio, o medo e a indiferença é a tarefa mais corajosa – e difícil. Esta sim, seria a melhor resposta dos não-covardes. Afinal, por mais justificados que sejam, onde estes sentimentos nos levarão? Não é preciso ceder em sua visão, mas sim, desarmar internamente as angústias, geradoras de pré-disposição para brigas e agressões. Cada lado pode fazer sua escolha com respeito aos demais e aceitar o processo democrático tal como é hoje.
Este só se aprimorará com todos juntos. (#Envolverde)