Por: Maria Carolina Trevisan* – Andi –
A cobertura jornalística de situações em que há profunda comoção social é sempre delicada. Repórteres precisam informar sobre fatos, entrevistar pessoas envolvidas – que muitas vezes estão em choque -, escutar especialistas e autoridades e montar, no tempo da internet, do rádio e da TV ao vivo, um cenário em que se possa compreender determinado acontecimento.
Em casos que envolvem crianças e adolescentes, como foi o massacre na escola de Suzano nesta quarta (13), os cuidados devem ser ainda maiores: as imagens da violência, os depoimentos tristes e nervosos de quem testemunhou as mortes, as práticas e os desejos dos atiradores, a situação social das famílias dos que mataram colegas de classe, estarão sempre à disposição de uma busca no Google, sem direito a desvincular da história de quem viveu a tragédia. Se esses relatos não forem feitos com muita cautela, podem aumentar um buraco que nunca cicatriza.
É nossa responsabilidade cuidar do leitor, da nossa audiência, dos ouvintes ou espectadores e oferecer informação de qualidade, sem expor todo mundo a um ciclo interminável de imagens violentas (ainda que borradas por recursos digitais) e gritos desesperados. Também é nosso papel, em casos como esse, zelar pelos entrevistados: são mães, pais, colegas, irmãos, familiares, gente que conviveu de alguma forma com Guilherme Taucci Monteiro, 17, e Luiz Henrique de Castro, 25, os atiradores.
Uma dessas pessoas é Tatiana, 35, mãe de Guilherme. A cena do repórter que a persegue para tentar tirar dela qualquer fala é constrangedora. Assim como escreveu o jornalista Mauricio Stycer, aquela cena ao vivo nos envergonha. Também me causou repulsa uma entrevista a uma adolescente que acabava de sair da escola com vida e mal conseguia respirar. Não é difícil perceber que ela não tinha condições de falar. Bastava olhar para ela.
Precisamos parar e refletir. A audiência não vale tudo. Em um brilhante texto de 2011, o professor e jornalista Eugênio Buccidescreve o perfil e a motivação de pessoas que cometem esse tipo de atentado e a responsabilidade do jornalismo. “São sempre do sexo masculino. São retraídos. São jovens. São suicidas.” Em geral, vivem com algum tipo de vulnerabilidade e nunca são escutados. Ao planejar e cometer esse ato buscam desesperadamente ser notados. A invisibilidade se equivale a não existir. “É possível que parte da compreensão desses crimes ainda venha a ser completada pelos estudos da mídia, uma vez que, nesse caso, o desejo de matar se confunde com o desejo de plateia.”
Nesse sentindo, a mídia está associada ao massacre e à certeza de uma cobertura massiva, detalhada, com picos e recordes de audiência. Funcionamos como o que Bucci chamou de “atalho para sua fama”. Talvez a cobertura agora precise centrar mais em como a sociedade e a rede de proteção de crianças e adolescentes permitiu que jovens em situação de vulnerabilidade familiar pudessem estar fora da escola, à margem de seus direitos, esquecidos. Ou como não conseguimos acessar essas redes de culto às armas e ao ódio.
Não é uma questão de achar culpados. Trata-se de construir um olhar necessário para nossa juventude, para as políticas públicas nessa área, para a solidão profunda que os fez agir dessa forma brutal. “Precisamos exercitar muito nossa sensibilidade nesses dias”, diz a psiquiatra Letícia Lessa, que trabalha com pessoas em situação de vulnerabilidade. Se não for assim, corremos o risco de normalizar a violência e desvalorizar as vidas, além de aumentar o risco de alimentar desejos de vingança e espíritos que cultivam o ódio.
Precisamos chegar a um nível de cobertura jornalística que não ultrapasse limites. É questão de exercitar o olhar sensível. “A regra é o bom senso. Temos que noticiar, zelar pela integridade da noticia, não sonegar imagens, mas também não espetacularizar o sofrimento alheio. É uma linha tênue e difícil”, afirma o premiado jornalista Marcelo Canellas, que cobriu, no Fantástico da TV Globo, tragédias como o caso da Boate Kiss. “O repórter precisa adotar uma postura respeitosa, de interlocução, de dar voz a quem quiser se expressar e respeitar o silêncio de quem prefere optar pelo luto solitário”, diz Canellas, que também é Jornalista Amigo da Criança.
Notícia não é espetáculo. Jornalismo não é entretenimento. Dar contornos sensacionalistas para tragédias como essas nos torna corresponsáveis pela desilusão, solidão e angústia que sentem as pessoas. Cuidemos de nossos adolescentes. Nessa fase, tudo parece muito mais potencializado. Inclusive a dor da alma que leva a alguém a cometer o impensável.
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*Maria Carolina Trevisan, 40, é jornalista especializada na cobertura de direitos humanos, políticas públicas sociais e democracia. Foi repórter especial da Revista Brasileiros, colaborou para IstoÉ, Época, Folha de S. Paulo, Estadão, Trip e Marie Claire. Trabalhou em regiões de extrema pobreza por quase 10 anos e estuda desigualdades raciais há oito anos. Coordena a área de comunicação do projeto Memória Massacre Carandiru e é pesquisadora da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós Graduação. É coordenadora de projetos da Andi – Comunicação e Direitos. Em 2015, recebeu o diploma de Jornalista Amiga da Criança por sua trajetória com os direitos da infância.
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