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Frente contra devedores irresponsáveis do Norte

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A crise da dívida norte-americana acompanha a depreciação do dólar.
Rio de Janeiro, Brasil, 8/8/2011 – Moratória, insolvência, irresponsabilidade fiscal, crise da dívida e outras expressões afins compõem um vocabulário que nas décadas de 1980 e 1990 identificava países em desenvolvimento ou do Sul. Em dez anos o mundo parece estar ao contrário. Os devedores “irresponsáveis” agora estão no Norte, enquanto os países sul-americanos, vítimas da “década perdida” de 1980 e das subsequentes crises financeiras, procuram atualmente se proteger do contágio proveniente da Europa e dos Estados Unidos.

Os ministros da Economia da América do Sul se reuniram no dia 5, em Lima, e voltarão a se encontrar no dia 12, em Buenos Aires, desta vez com a presença dos presidentes de bancos centrais, para discutir políticas dentro do contexto da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) para enfrentar os efeitos das crises que se espalham, vindas do mundo industrializado.

Fala-se de “blindagem”, de mitigar impactos em conjunto, já que o deslocamento das crises é geográfico, não econômico nem simétrico. O mundo em desenvolvimento não conta com poder financeiro nem do Fundo Monetário Internacional para impor ajustes ou “ajudá-los”, como ocorreu quando os insolventes eram os pobres.

A problemática financeiro-econômica agora é universal, muito diferente das recessões ou mesmo regressões sofridas por alguns países contagiados pelas crises que afetaram severamente México, sudeste asiático, Brasil, Argentina ou Turquia nos anos 1990 e começo desta década.

A recessão, ou, pelo menos, desaceleração das economias é esperada por todas as partes devido à estagnação europeia, que tende a se agravar, e à redução orçamentária decidida pelo Congresso norte-americano, como condição do opositor Partido Republicano para aceitar a ampliação do limite de endividamento do governo e, assim, evitar a suspensão de pagamentos (default).

Alguns especialistas expressam preocupação. O Brasil, uma das economias emergentes, não deveria sofrer muito no curto prazo em razão do “pacote” de reduções dos Estados Unidos, que “politicamente é um desastre”, mas as perspectivas futuras “são más”, afirma Fernando Cardim, professor aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

O longo prazo hoje é “imprevisível”, mas a tendência aponta para o pior, já que “a direita norte-americana pode exigir cada vez mais” – por exemplo, maior redução fiscal recessiva –, e a crise europeia tende a se aprofundar e ir além de Espanha, Grécia e Portugal, acrescentou Cardim em conversa com a IPS, no intervalo de um encontro de economistas keynesianos no Brasil.

No caso brasileiro, os efeitos comerciais de uma queda na demanda dos Estados Unidos seriam menos prejudiciais do que no passado, quando esse país era o principal comprador, com um quarto do total. Contudo, tudo mudou nos últimos tempos. No ano passado, o Brasil enviou aos Estados Unidos apenas 9,5% de suas exportações, enquanto 15,2% foram para a China.

Além disso, o Brasil diversificou seu comércio exterior e o intercâmbio com os Estados Unidos passou de superávit (em 2006 chegou a US$ 9,9 bilhões) para um déficit de US$ 7,7 bilhões, ao importar no ano passado US$ 27,03 bilhões desse país norte-americano.

As perdas com o mercado norte-americano também são qualitativas, porque o Brasil vende para os Estados Unidos majoritariamente bens manufaturados, enquanto para a China envia quase exclusivamente produtos primários, como minério de ferro, soja e petróleo. Essa tendência de exportações cada dia mais concentradas em recursos naturais e agropecuários, que acompanha a chamada “desindustrialização”, é o principal problema brasileiro, que pode se agravar com as debilidades econômicas dos Estados Unidos e da União Europeia.

Além do superávit comercial geral que obtém graças ao bom preço dos produtos básicos, o Brasil atrai mais fluxos financeiros, fazendo com que se intensifique a valorização do real e, por fim, o processo de redução do peso da indústria nacional em sua economia, com perda de exportações e aumento de suas compras de bens manufaturados.

Por isso, o governo de Dilma Rousseff foi obrigado a reduzir impostos e encargos trabalhistas para aliviar a indústria que mais emprega mão de obra, como a têxtil e a de calçados. Quanto ao setor de produção automobilística, outra área pujante, continua recebendo investimentos, especialmente em inovações tecnológicas.

O governo também procura conter a entrada de capitais especulativos, com a implantação de medidas pontuais que, entretanto, não puderam, até agora, conter a valorização do real. A cotação do dólar passou de R$ 2,34 no final de 2005 para R$ 1,57 na semana passada.

Para Cardim, serão necessárias medidas mais amplas de controle desse fluxo também dos chamados capitais “andorinhas”. É que uma eventual fuga repentina desse dinheiro pode “gerar pânico e inflação”, uma experiência já conhecida dos brasileiros.

Sobre uma ação coordenada dos países sul-americanos, o professor se mostra cético porque os interesses são muito diversos. Talvez fosse mais efetivo acordar respostas com outras economias emergentes, como Índia e África do Sul, países que junto com o Brasil formam o fórum Ibas, acrescentou.

Na Argentina, o impacto do ajuste fiscal norte-americano também se manifestaria de modo indireto, já que levaria a um menor crescimento econômico mundial, com a consequente queda da demanda comercial global, segundo Enrique Aschieri, da Sociedade Internacional para o Desenvolvimento. A vulnerabilidade de seu país hoje é reduzida, depois de mostrar constante superávit comercial nos últimos oito anos, destacou o especialista à IPS. Os Estados Unidos hoje são apenas o quarto destino das vendas externas argentinas, superado por Brasil, China e Chile, nessa ordem.

“Embora a crise possa nos afetar por exportarmos menos, como ocorreu em 2009, temos ainda uma grande margem para crescer para dentro”, no mercado interno, disse Aschieri. Acrescentou que o problema de pagamento dos Estados Unidos, que colocou o mundo diante de uma incerteza sem precedentes, “é um tema político” interno, como ficou demonstrado com o acordo dos dois grandes partidos que permitiu aumentar o teto do endividamento desse país.

Quem enfrenta problemas difíceis de resolver devido à situação nos Estados Unidos é a outra grande economia latino-americana, a mexicana, que aparece muito exposta por estar atada ao Tratado de Livre Comércio da América do Norte, formado pelos dois países mais o Canadá desde 1994. O México, que já sofreu de modo direto a crise de seu vizinho do norte em 2008, foi convidado para a reunião especial da Unasul em Lima, embora não faça parte do bloco.

É que esse país já sofre a debilidade da recuperação econômica norte-americana e europeia, especialmente no “intercâmbio comercial e na manufatura nacional com demanda nos Estados Unidos, como a produção automobilística e agrícola e a zona franca industrial”, disse à IPS o analista Edgar Amador.

O governo do presidente Felipe Calderón afirma que a chave para enfrentar a conjuntura está em impulsionar o mercado interno. Além disso, conta com reservas internacionais de US$ 132 bilhões e, segundo o Fundo Monetário Internacional, neste ano foi o principal comprador de ouro do mundo.

“É desconcertante” ver o que acontece com o México, que “não pode manter um ritmo rápido de crescimento” depois de liberalizar seu comércio e aumentar “notavelmente as exportações de manufaturas”, disse o economista Carlos Ibarra, da Universidade das Américas, no Estado de Puebla. Ibarra considera viável harmonizar políticas regionais para abrandar os ventos do Norte, mas seus efeitos seriam marginais, especialmente para países como o México, “por sua enorme dependência dos Estados Unidos”. Envolverde/IPS

* Com colaboração de Marcela Valente (Buenos Aires) e Emilio Godoy (México).