A questão da água e as empresas

“Em 2015, metade dos municípios brasileiros terá problemas de abastecimento de água, se governos, empresas e sociedade não agirem agora.”

O país de maiores recursos hídricos do planeta não consegue oferecer água de qualidade para a população. Mais do isso: vive problemas de “estresse hídrico” em caudalosas bacias, como a do Rio Paraná, por conta da alta densidade populacional e da falta de saneamento básico e de cuidado com a preservação vegetal que garante a água das nascentes e mananciais.

Se governos, empresas e sociedade não agirem agora, já em 2015 metade dos municípios brasileiros terá problemas com abastecimento de água. Como chegamos a esse ponto e o que pode ser feito?

O Brasil dispõe de 12% de toda a água doce do mundo e, mesmo assim, corre risco de escassez desse recurso em um futuro bem próximo. Um estudo de conjuntura da Agência Nacional de Águas (ANA), lançado em 20 de julho, conclui que 25% da água utilizada pelo brasileiro tem qualidade regular ou ruim. Comparando-se aos 75% da água considerada boa ou ótima, 25%  pode parecer pouca coisa. No entanto, essa água de baixa qualidade é destinada justamente às grandes metrópoles e cidades das regiões com maior densidade demográfica do país: Sul e Sudeste.

A distribuição da água não é igual em todo o país. A Amazônia detém 68% dos recursos hídricos, por ser cortada pelos rios mais caudalosos do mundo, como o Tocantins, o Araguaia, o Xingu, o Madeira e o próprio Amazonas, entre outros. É lá também que a ANA localizou a água considerada boa ou ótima. Mas quase não há grandes cidades na região. Apenas 7% dos brasileiros vivem ali.

Falta de saneamento compromete qualidade e abastecimento

As grandes concentrações populacionais do país formaram-se onde há menos água: no Sul e no Sudeste. E a água nessas regiões, por falta de saneamento básico e de gestão, está poluída e contaminada, seja por efluentes industriais, seja por esgoto doméstico. Com isso, fica cada vez mais difícil abastecer as metrópoles, como Rio e São Paulo, e até mesmo cidades médias, como Campinas, Sorocaba, Niterói e Florianópolis. No Sul e no Sudeste estão 72% da população e apenas 15% dos recursos hídricos.

Nessas regiões encontram-se também os rios mais poluídos do país, de acordo com o levantamento da ANA: o Tietê, que corta a capital paulista, o Iguaçu, que forma as cataratas no Paraná, e o Guandu-Mirim, no Rio de Janeiro. Os dois últimos ficam em unidades de conservação, respectivamente o Parque Nacional do Iguaçu e a Área de Preservação Ambiental do Rio Guandu. De modo geral, nessas regiões o lançamento de esgotos nos rios está acima da capacidade hídrica de assimilação.

A ANA também apurou que, nas cidades onde houve investimento em saneamento básico, a qualidade dos rios melhorou. É o caso do Rio das Velhas, em Minas Gerais, do Rio Paraíba do Sul (que corta cidades como São José dos Campos, Jacareí e Taubaté), do Rio Sorocaba, do Rio Piracicaba e do Rio Grande, no Estado de São Paulo.

O risco de abastecimento está vinculado à atividade agropecuária, mais especificamente ao uso excessivo e ao manejo inadequado do solo, pelo desmatamento, provocando erosão e assoreamento dos rios, e pela aplicação de defensivos em demasia, contaminando até as nascentes dos cursos d’água.

Um exemplo das consequências desse descaso: uma pesquisa feita pela Universidade Federal de Mato Grosso revelou que, em Lucas do Rio Verde, no Mato Grosso, até o leite materno já está contaminado por defensivos agrícolas usados de forma errada e que vão parar nos rios que cortam e abastecem a cidade. Lucas do Rio Verde é uma cidade de 45 mil habitantes, considerada a “vitrine” do agronegócio, pela produtividade de suas lavouras e pecuária, e pela nota obtida no levantamento do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) – acima de 0,8, entre as melhores do país.

Outra causa da escassez, cada vez mais presente no cotidiano dos brasileiros, são as mudanças climáticas. No já citado relatório recentemente divulgado, a ANA avaliou que alguns eventos naturais extremos que afetaram a oferta de água no país, ao longo de 2010, se deveram às consequências das mudanças climáticas: estiagem na Amazônia e enchentes em Alagoas, Pernambuc e Minas Gerais, cheias em São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.

Para se ter uma ideia do agravamento dessa situação, em 2006, foram feitos 135 registros de emergência ou calamidade pública por conta de fortes chuvas. Em 2010, esse número subiu para 601. No total, quase 10% das cidades brasileiras (563) decretaram situação de emergência devido a enchentes, inundações, enxurradas e alagamentos.

Soluções para evitar a escassez

Não há uma solução que possa resolver o problema da água em todas as regiões do Brasil. Cada situação exige uma abordagem. Por isso, a gestão hídrica está entrando na ordem do dia das empresas e dos governos. Falta a sociedade abraçar com mais força esta causa, porque a água é um recurso essencial.

No caso das empresas, algumas já estão avançando em projetos e inovações para reúso da água, bem como em redução de consumo. Aliás, o reúso já deveria ser regra geral em qualquer empresa, de qualquer porte, assim como ações para estabelecer o uso eficiente do recurso.

Institucionalmente, no que tange à legislação sobre captação e uso da água, o Brasil é regido pelo Código (ou Lei) das Águas, estabelecido em 1934, que determinou princípios como o do usuário-pagador, o da preservação do usuário de montante pelo usuário de jusante, o das fontes de água como públicas, o da necessidade de concessão administrativa para exploração dessas fontes, e o da prioridade para o abastecimento para higiene e consumo doméstico.

Em 1997, foi promulgada a Política Nacional de Recursos Hídricos, que entre outras medidas instituiu a Agência Nacional das Águas como reguladora para o recurso, a gestão descentralizada e participativa, e o manejo sustentável da água. Também reconheceu que se trata de recurso limitado.

Essa política estabeleceu diretrizes para algumas ações de uso eficiente da água, que permitiram o avanço de algumas soluções, como o reúso industrial, processo pelo qual a água, tratada ou não, é reutilizada para geração de energia, refrigeração de equipamentos, aproveitamento nos processos industriais, assentamento de poeira em obras, combate a incêndios e limpeza de ruas e praças.

No entanto, o desafio é bem maior que esse. O uso industrial da água corresponde a 10% do consumo total do país. A agropecuária consome 72% e os domicílios, se consomem apenas 8%, produzem o maior volume de efluentes poluidores dos rios, que são os esgotos domésticos.

Modelo integrado

Sem a Amazônia, as cidades do Sul e do Sudeste deixariam de existir, pois essas regiões se transformariam num deserto. Isto porque a água que evapora das florestas nativas forma as chuvas que caem no Sul e no Sudeste e recuperam os rios, lagos e outros reservatórios.

Imagine o que acontecerá se expandirmos o modo de vida urbano, de grandes cidades sem saneamento, e o modelo agrícola, com agrotóxico e desmate para a Amazônia! Os rios logo estarão poluídos por esgotos e agrotóxicos, a floresta devastada e as nascentes comprometidas, resultando em seca no Sul e no Sudeste.

Afastar o risco de escassez de água significa, então, reinventar o modo de vida atual, substituindo um que desperdiça e polui por outro que valoriza e cuida do recurso mais essencial para a vida no planeta.

* Paulo Itacarambi é vice-presidente executivo do Instituto Ethos.

** Publicado originalmente no site Instituto Ethos.