O artigo de Nic Fleming refresca realmente o ambiente. Como ele mesmo escreve, “muitos economistas acreditam que os incentivos contam toda a história. No entanto, os fatos (the evidence) nos dizem que eles se enganam”. Uma série de pesquisas recentes mostra que temos aqui uma faca de dois gumes. As pessoas ficam sem dúvida contentes em receber um bônus, mas à medida que o espírito do bônus se instala, as pessoas perdem de vista os objetivos reais das suas contribuições profissionais, e os resultados se invertem.
A cultura do bônus sem dúvida se generalizou, inclusive em áreas como educação, saúde e semelhantes. Parecia tão óbvio que por uma recompensa as pessoas se esforçariam mais, que esqueceram de pesquisar se realmente isto se verifica. “Pode vir como um choque para muitos, descobrir que um amplo e crescente corpo de dados (evidence) sugere que, em muitas circunstâncias, pagar por resultados pode até fazer as pessoas terem uma performance ruim, e que, quanto mais se paga, pior a performance”.
Na realidade, o que as pesquisas mostram, é que ao promover o estímulo da recompensa por resultados – a “cenoura” para fazer as pessoas trabalharem mais – aumenta o estímulo financeiro, mas reduz-se progressivamente a motivação intrínseca do trabalho bem feito, do prazer da competência. De certa forma, “quanto mais se recompensa as pessoas por fazerem algo, mais a sua motivação intrínseca tende a declinar”. “Os estudos sugerem que oferecer recompensas pode travar a tendência das pessoas fazerem as coisas pelo prazer da realização, uma ideia conhecida como efeito de sobrejustificação (overjustification). Esta foi a base de uma série de livros de Alfie Kohn nos quais ele argumenta que recompensar crianças, estudantes e trabalhadores com notas, incentivos e outras ‘propinas’ leva a um trabalho inferior no longo prazo… Os que recebem os bônus inevitavelmente jogam pelo seguro, tornam-se menos criativos, colaboram menos e se sentem menos valorizados.”
Ainda que a reação natural e um pouco cínica nos faça duvidar, o fato é que uma meta-análise (sistematização de análises anteriores) de 128 pesquisas coordenadas por Edward Deci, da Rochester University (NY), sugere que se trata de dados muito firmes. Segundo Deci, “os fatos são absolutamente claros. Não há dúvidas que praticamente em todas as circunstâncias em que as pessoas estão fazendo coisas para obter recompensas, recompensas extrínsicas tangíveis minam a motivação intrínseca… Uma vez que se torna as pessoas dependentes de resultados e não dos comportamentos, para obter as recompensas, os dados mostram que as pessoas vão tomar o caminho mais curto para estes resultados”.
Não estamos sonhando. Fica claro, no artigo de Fleming, que quando se está fazendo coisas estúpidas apenas por dinheiro, o bônus não vai reduzir uma motivação que o trabalhador já não tinha. Mas no conjunto, a dependência do bônus, da recompensa material calculada a cada esforço, tende finalmente a desviar a atenção das pessoas dos resultados mais amplos do processo produtivo, e isto é particularmente importante nas atividades densas em conhecimento que ocupam cada vez mais espaço.
Geraint Anderson, que trabalhou anos em bancos em Londres, e escreveu Cityboy, sobre o trabalho no meio financeiro, tão dependente de bônus, resume o assunto: “Se você pode roubar o avanço dos seus colegas, buscar crédito pelas realizações deles, tocar a sua própria corneta e puxar o saco do seu chefe (kiss your boss’s arse), você pode sim aumentar o seu bônus”. Anderson, que ganhou dois bônus anuais de meio milhão de libras cada, sabe do que está falando.
Os argumentos trazidos por Fleming são importantes. Seguramente não se aplicam a todas as circunstâncias. Mas, da mesma forma como estamos deixando de acreditar nas bobagens do tipo que o ser humano se guia pela maximização racional das vantagens individuais, estamos começando a repensar a teoria da cenoura. Não somos coelhos. E os desastres financeiros gerados pelos administradores que mais recebem bônus no planeta constituem um argumento interessante. Um gerente da sua conta no banco, movido a bônus proporcionalmente à quantidade de “reciprocidades” (seguros inúteis, pacotes de aplicação, etc.) lá vai se preocupar em lhe informar realmente sobre os riscos?
Na realidade, é mais complexo mas mais significativo assegurar qualidade de vida no trabalho, um clima colaborativo e de respeito, salários decentes, transparência nas informações, processos mais democráticos de decisão, redução da jornada de trabalho (as tecnologias já permitem, as ideias não surgem proporcionalmente às horas, e um fim de semana completo com a família todo mundo merece). E também, porque não, aplicar aquelas regras de ética empresarial penduradas na sala da presidência. As coisas que o empregado faz têm de fazer sentido para ele, para o meio ambiente e para a sociedade, não só para os sócios. Passamos muitas horas no trabalho, e isto precisa nos dar certa satisfação todo dia, e todo mês, não no fim do ano.
* Ladislau Dowbor é doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, Polônia, e professor titular da PUC-SP.
** Publicado origialmente no site do autor.