Por Eloisa Artuso*, CartaCapital –
Se o setor têxtil é pioneiro na indústria 4.0, precisa garantir que as pessoas e o meio ambiente sejam incluídos nessa nova realidade
Sendo a “insustentabilidade” um problema estrutural em nossa sociedade contemporânea, nada melhor do que começar olhando para como estamos formando as novas gerações de profissionais que entram no mercado de trabalho a cada ano. A educação é uma ferramenta poderosa para a criação de futuros mais sustentáveis, pois transforma a sociedade, garante a democracia e promove igualdade e justiça.
O processo de aprendizagem é extenso, contínuo e promove profundas mudanças internas e externas nas pessoas. Por isso, é preciso que seja holístico, com o objetivo final de formar não só técnicos e especialistas, mas seres humanos éticos e cidadãos conscientes, com habilidades para lidar com as demandas complexas que o mundo aponta.
A tecnologia, por sua vez, está se tornando um fator cada vez mais importante e, por vezes, decisório neste processo. Ela moldou nossos estilos de vida atuais e irá influenciar mais e mais a maneira como nos relacionamos individualmente, coletivamente, na vida profissional ou pessoal, ou seja, como fazemos sentido do mundo. Na indústria da moda, a tecnologia vem acompanhada da promessa de um futuro próspero, de um novo cenário que se desenha com a chegada da indústria 4.0.
Essa nova página dentro da história das revoluções industriais está prestes a ser virada no século XIX e parece entusiasmar muitos. Mas enquanto o modelo vai se espalhando pelo planeta e começa a se desenhar no Brasil, vemos que mais da metade dos empregos formais e informais do país (58,1%) poderá ser substituída por máquinas nos próximos 10 a 20 anos, o equivalente a 52,1 milhões de postos de trabalho. Isso quer dizer que se não olharmos com atenção agora para os processos de aprendizagem, formatos de cursos e disciplinas oferecidos no setor, teremos que lidar com um grande problema em pouco tempo.
Não se trata somente de combater a ameaça do desemprego em massa, mas principalmente de evitar que continuemos perpetuando uma mentalidade, um padrão de desenvolvimento e modelos de produção e consumo que não são benéficos para as pessoas e para o planeta. Portanto, a transição para um novo paradigma econômico e de negócios por meio de processos de educação e formação atualizados e contextualizados ao nosso tempo é fundamental e urgente.
A quarta revolução industrial será, de fato, grandiosa para alguns, mas se não analisarmos suas transformações e impactos com atenção e abrangência, ela poderá trazer consequências significativamente negativas para muitos. O que está em curso nesta nova fase da indústria é um conjunto de tecnologias que incluem inteligência artificial, robótica, internet das coisas, impressão 3D, nanotecnologia, biotecnologia e ciência de materiais.
Iniciada na Alemanha a partir de um projeto de desenvolvimento de fábricas inteligentes, a indústria 4.0 traz consigo uma verdadeira mudança de paradigma para o setor fabril, tornando as linhas de produção mais autônomas, eficientes, produtivas e competitivas.
Certamente, as inúmeras possibilidades que essa série de avanços traz para a criação de novos processos, produtos e serviços é emocionante, mas é importante lembrar que a tecnologia pela tecnologia não resolverá os problemas sociais, econômicos e ambientais que enfrentamos (e enfrentaremos) e, potencialmente, em muitos casos, ela os acelerará.
Os diversos especialistas, organizações e associações do setor entusiastas dessa mudança defendem que a automação aumentará a produtividade – e competitividade – garantindo maior volume e menor tempo na produção em grande escala dos bens de consumo em massa. No entanto, já sabemos das consequências gravíssimas trazidas pelo modelo fast-fashion nas últimas décadas, tanto para os trabalhadores do setor, quanto para o planeta.
Aumentar a produtividade, sem considerar a geração de renda ou a garantia de novos postos de trabalho para milhões de pessoas na cadeia de fornecimento da moda, não me parece um plano de futuro razoável. Tamanhas transformações estruturais nos modelos de produção e consumo da moda obviamente trarão mudanças no perfil dos profissionais do setor e, consequentemente, nos processos de formação dessas pessoas.
Um estudo desenvolvido pela McKinsey que avalia as perdas e ganhos em relação a empregos em diferentes cenários até 2030, argumenta que é preciso dimensionar e reimaginar o treinamento e o desenvolvimento de habilidades da força de trabalho. Além disso, coloca o treinamento profissional como um desafio central para alguns países e que empresas podem assumir a liderança em algumas áreas trabalho e oferecer oportunidades aos trabalhadores para aprimorar suas habilidades, assim como renda e apoio durante a transição.
Mas encarar uma mudança sistêmica como essa somente do ponto de vista econômico ainda é falho. Nós excedemos os limites do planeta, com aproximadamente 7,6 bilhões de habitantes e uma contínua obsessão por crescimento econômico – e tecnológico – estamos alimentando um processo que coloca em risco nossa própria sobrevivência. Se hoje consumimos o equivalente a 1,75 planetas, quantas Terras seriam necessárias para acomodar uma revolução como essa?
Se o setor têxtil e de confecção é considerado um dos pioneiros nessa transformação industrial, é preciso que esteja verdadeiramente à frente de seu tempo para garantir que as pessoas e o meio ambiente sejam incluídos nessa nova realidade.
As futuras gerações de profissionais precisam estar preparadas para lidar com os desafios atuais de forma realista, holística, empática e ética. Sua formação deve incentivar o desenvolvimento de um pensamento crítico, autônomo, diverso e conectado com a natureza, ao contrário do individualista, automático e repetitivo que temos como padrão hoje. Afinal de contas, quem ganha com a competitividade são os poucos do topo e não os muitos da base.
Gosto de encarar esse processo de reflexões, aprendizagens e ações como uma forma de hackear o sistema da moda com criatividade e responsabilidade, que possibilita a construção coletiva de melhores futuros. Ao colocar a educação como um eixo norteador, que propicia a construção contínua da experiência e da aprendizagem da vida, devemos encorajar as pessoas a agirem sempre dentro de um contexto humano e ambiental.
Em seu recém-lançado livro “Earth Logic“ (Lógica da Terra, em tradução literal), Kate Fletcher e Mathilda Tham defendem que a transição para uma vida na “Lógica da Terra” requer aprender a lidar com a perda de estilos de vida e visões de mundo anteriores e “desaprender” esses antigos hábitos e formas de se relacionar e pensar sobre o mundo.
Nesse sentido, esse processo de “reaprendizagem” passa a ser um ato político e tem como principais competências: a confiança, a criatividade, a comunidade e alfabetização ecológica. A abordagem da educação para a formação de mentes ativamente críticas, capazes de compreender e responder às questões estruturais e insustentáveis é fundamental na construção do futuro.
Seguramente, será necessária também a criação de políticas mais permanentes para garantir a justiça social. De acordo com a McKinsey, políticas mais abrangentes de salário mínimo, renda básica universal ou ganhos salariais vinculados ao crescimento da produtividade são soluções possíveis que devem ser exploradas. Os formuladores de políticas, os líderes empresariais e os trabalhadores têm papéis importantes a desempenhar nessa construção.
Por aqui, pelo terceiro ano, realizaremos o Fórum Fashion Revolution, a primeira plataforma do Brasil criada exclusivamente para fomentar a pesquisa e o desenvolvimento sustentável na indústria da moda. Desde 2018, temos incentivado os participantes a explorarem os possíveis cenários, desafios e soluções sustentáveis dentro do sistema da moda, através de diferentes abordagens metodológicas e filosóficas, além de encorajar o estudo aprofundado dos impactos dos negócios de moda na qualidade de vida das pessoas e do planeta.
O Fórum Fashion Revolution 2020 quer colocar em pauta os desafios da indústria da moda de forma aberta para que todos possam participar desse diálogo e desenhar juntos novas soluções. Embora as ações individuais sejam importantes, elas não são suficientes para trazer a mudança sistêmica necessária. Precisamos unir forças, porque juntos somos mais barulhentos, mais poderosos e temos muito mais chances de provocar transformações quando trabalhamos em colaboração.
Quer participar da discussão? Submeta um ensaio teórico ou ilustração dentro de um dos eixos temáticos do Fórum Fashion Revolution 2020: condições de trabalho, consumo, composição, ações coletivas. As inscrições estão abertas e podem ser feitas por aqui.
* Eloisa Artuso é designer, diretora educacional do Fashion Revolution Brasil e professora de Design e Sustentabilidade do IED – Istituto Europeo di Design. Com um trabalho fundamentado no espaço onde sustentabilidade, cultura e educação se fundem com o design, se dedica a projetos que incentivam profundas transformações na indústria da moda. Siga @eloartuso
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