Efeitos do Complexo Eólico em Canudos, BA comprometem gravemente a proteção da arara-azul-de-lear no sertão da caatinga
A arara-azul-de- lear (Anodorynchus leari), considerada uma das 7 maravilhas da natureza e classificada como ‘Em perigo’ de extinção, segundo a União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN), corre risco de desaparecer novamente. De acordo com o Parecer Técnico emitido em 05/03/2020 pelo Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia – INEMA, no âmbito da Licença Prévia, a empresa de origem francesa, Voltalia Energia do Brasil, pretende colocar em operação um parque eólico que será instalado na rota de voo das araras.
O local escolhido para construção do Complexo Eólico Canudos, com capacidade para 12 parques, se sobrepõe exatamente à área que é uns dos principais refúgios da arara-azul-de-lear, na Caatinga baiana. O impacto do empreendimento traz bastante preocupação em diversos sentidos, uma vez que a tecnologia e infraestrutura utilizadas na geração de energia apresentam um alto potencial de conflito com o grupo das aves, entre outros animais voadores. “Achamos arriscado o funcionamento de um Parque eólico na área de ocorrência das learis. A espécie voa aos pares e em bando, de modo que um único evento de colisão poderá incidir na morte de muitos indivíduos e comprometer a viabilidade populacional em pouco tempo, ou seja, extinguir a espécie”, afirma Glaucia Drummond, superintendente técnica da Fundação Biodiversitas.
A energia eólica se denomina como uma matriz energética limpa e sustentável, seu desenvolvimento é muito almejado no país que apresenta paisagens e clima propícios para sua modalidade. No entanto, a agilidade com que tudo está caminhando tem preocupado bastante grupos ambientalistas e negócios ligados ao turismo de observadores de aves da região. É necessário que a legislação ambiental e os protocolos sejam observados com muita cautela para não contravir questões sociais, econômicas e garantir a proteção ambiental e principalmente prevenir impactos inerentes de empreendimento dessa natureza. A preocupação da liberação para construção do parque eólico é ressaltada na opinião do Dr. Caio Graco Machado, do Laboratório de ornitologia da Universidade Estadual de Feira de Santana. “Em se tratando da arara-azul-de-lear, mesmo sem conhecimento sobre altura de voo destes bichos, etc, eu já considero algo muito inoportuno, mesmo. Minha impressão de que é, a princípio, nada adequado ter um parque eólico próximo das áreas de A.leari.”
Um outro fato relevante nesse processo de licenciamento do Parque Eólico Canudos é que o licenciamento, pelo seu porte, está sendo conduzido pela forma simplificada. Contudo, segundo o artigo 3º, § 3º da resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) no. 462 de 24 de julho de 2014: “Não será considerado de baixo impacto, exigindo a apresentação de Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA), além de audiências públicas, nos termos da legislação vigente, os empreendimentos eólicos que estejam localizados, em: VII – em áreas de ocorrência de espécies ameaçadas de extinção e áreas de endemismo restrito, conforme listas oficiais.”
Para Felipe Melo, do Laboratório de Ecologia Aplicada da Universidade Federal de Pernambuco, “as turbinas eólicas têm forte impacto nas aves e morcegos, além de gerarem conflitos socioambientais bem documentados. Instalar turbinas eólica próximo às áreas de uma espécie tão ameaçada como a arara-azul-de-lear é temerário. O setor eólico não pode continuar agindo como um fator de conflito ambiental, precisa já ouvir a ciência e abraçar sua missão de ajudar para a transição para um mundo mais sustentável.”
A ave de exuberante beleza foi redescoberta no bioma ao final dos anos 1980. A espécie simboliza muito bem a força e a resistência brasileira, ela é encontrada somente na região do Raso da Catarina, justamente nas proximidades do referido empreendimento. A ave já esteve à beira da extinção, basicamente em função de sua captura e comércio ilegal e também pela perda de seu habitat e alimento. O Raso da Catarina é tido como um dos locais ou sítios-chave, tanto da Aliança Global para Extinção Zero (AZE) como da iniciativa análoga em nível nacional a Aliança Brasileira para Extinção Zero (BAZE), sendo considerado o último refúgio de A. lear. Além disso, a região é classificada como área prioritária de importância extremamente alta para conservação da biodiversidade da Caatinga, segundo estudos do Ministério do Meio Ambiente para o bioma.
Ao longo dos anos, as ameaças sofridas pelas araras não cessaram, algumas foram atenuadas, porém agora, além dos riscos conhecidos a espécie terá que enfrentar um outro iminente para garantir sua existência. A opinião de vários especialistas em aves consultados pela Biodiversitas converge no receio de colisão das araras em áreas de sobreposição à instalação das pás eólicas. Para o presidente do Comitê Brasileiro de Registros Ornitológicos, José Fernando Pacheco, “aerogeradores podem causar impacto negativo em algumas espécies de aves. Porém, essa é uma avaliação que precisa ser feita por meio de um estudo. Tal estudo ganha em importância e responsabilidade em se tratando da emblemática e ameaçada arara-azul-de-lear. No caso específico das araras, é importante verificar se elas de fato fazem deslocamento na área estabelecida pelo empreendimento. Investigar se esse deslocamento é eventual, sazonal ou diário é importante para saber se o empreendimento pode ou não afetar de forma sensível a população das araras.
Por conta da necessidade extrema de cuidar dessa ave e de seu habitat, a Fundação Biodiversitas mantém, há quase 30 anos na Estação Biológica de Canudos, um programa pioneiro de recuperação da população da arara-azul-de-lear. A criação do programa de conservação, dedicado exclusivamente à proteção da espécie, foi motivada pela urgência de se reverter o estado de conservação que, à época, sugeria uma extinção próxima. “As turbinas serão instaladas no trajeto que é feito todos os dias pelas araras, em dois turnos. A faixa de altura do voo das araras coincide com a altura das torres de energia, portanto, as chances das araras se chocarem com as pás dos geradores são muito altas. Há muitos anos trabalhamos, sol a sol, para trazer a população de araras de 60 para quase 2.000 indivíduos e tememos que todo este esforço seja desperdiçado. Além disso, este tipo de empreendimento deixa pouco legado na região, empregam pessoas durante as obras e depois já não tem mais como oferecer postos de trabalho, ” informa Caboclo, guarda-parque da Estação Biológica de Canudos.
A área protegida pela instituição abrange hoje 1.500 hectares, o que proporcionou o aumento da proteção dos dormitórios e sítios reprodutivos das araras. Todo o trabalho realizado pela Biodiversitas e parceiros como a Judith Hart, a American Bird Conservancy, a Fundação Lóro Parque, o Busch Gardens Conservation Fund, a Fundação Grupo O Boticário de Proteção à Natureza, a Seguros Unimed, e outros, aumentou em quase 40 vezes o número de indivíduos vivendo livremente na natureza, segundo o último censo anual realizado pelo Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Aves Silvestres – Cemave, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBio em parceria com a Biodiversitas. Esse dado mostra, três décadas depois, que ações efetivas de conservação de seu habitat são cruciais para o desenvolvimento e garantia de sobrevivência da espécie.
Ao mesmo tempo, esses resultados colocam o programa brasileiro de conservação das araras-azuis na condição de um dos mais bem-sucedidos do mundo. Vale dizer que a Estação Biológica de Canudos é hoje visitada e reconhecida por centenas de turistas, de diversos países, em busca de um espetáculo que somente o sertão da Bahia pode oferecer. Este turismo não só contribui para o aumento da consciência ambiental em diversos aspectos e dimensões, mas também promove o incremento da economia local, gera empregos e renda.
A Fundação Biodiversitas questionou a Voltália sobre diversos aspectos do empreendimento, sendo que parte das perguntas não foram respondidas pela empresa. Acreditamos que diante de todas as pressões sofridas pela espécie, somadas ao fato de que o número atual de indivíduos maduros da Leari (< 250) ainda não é suficiente para que o risco de extinção seja eliminado, acrescentar mais um risco à espécie é assinar um atestado de extinção em um futuro muito próximo. E no contexto apresentado, reforçamos, como uma instituição que protege o habitat da arara, sobre a necessidade de atentar para a legislação ambiental e cumprir os processos de licenciamento na íntegra e, assim, minimizar os impactos oriundos de um complexo eólico em área tão delicada.
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