ODS13

O que a juventude periférica tem a ver com as questões climáticas? Tudo!

Por Stephanie Kim Abe, Cenpec – 

Mahryan Sampaio, diretora executiva do Instituto Perifa Sustentável, conta por que trazer a agenda da crise climática para estudantes da periferia é fundamental
Todo verão é a mesma coisa: casos de chuvas torrenciais que deixam alagados diversos bairros de cidades brasileiras. Este ano não foi diferente. Municípios de Minas Gerais, São Paulo, Bahia e Rio de Janeiro, entre outros estados, sofreram com as precipitações intensas que ocorreram desde dezembro de 2021. Mas foi em Petrópolis que aconteceu a tragédia mais avassaladora: no dia 15 de fevereiro, a cidade registrou o maior volume de chuvas em sua história (cerca de 260 mm em 24 horas), que ocasionaram diversos deslizamentos e alagamentos na cidade, resultando em mais de 230 pessoas mortas.
Apesar de ter sido considerado um fenômeno excepcional e praticamente imprevisível por diversos especialistas, as chuvas de Petrópolis, analisadas junto com outros eventos climáticos extremos, podem indicar as consequências das mudanças climáticas.

Em entrevista à BBC News, o climatologista Carlos Nobre afirmou que a frequência mais recorrente e intensa desses fenômenos podem ser cada vez mais comuns:

“Basta olhar os relatórios científicos e ver que a frequência das ondas de calor é de três a quatro vezes maior do que há 150 anos, as chuvas intensas que causam desastres ficaram mais frequentes, os incêndios florestais e as secas, batemos recordes de temperatura. Tudo isso está acontecendo por causa do aquecimento global.”

Mudanças climáticas em pauta

Estão cada vez mais presentes no nosso cotidiano evidências de como a ação humana predatória tem causado destruição ambiental e ocasionado uma crise climática. Mas será que, para as(os) estudantes brasileiras(os), esses impactos estão de fato evidentes? Será que percebem o quão implicadas estão nessas mudanças ambientais? Mais ainda, o quanto esse processo impacta mais determinado grupo de pessoas – o daquelas mais vulneráveis – do que outro? Como a escola tem tratado e pode tratar desse assunto de forma mais efetiva?

Para falar sobre essas questões, o Portal Cenpec entrevistou a jovem Mahryan Sampaio. Embaixadora da Juventude da Organização das Nações Unidas (ONU), ela é diretora da ONG IKMR – Eu Conheço Meus Direitos e diretora executiva do Instituto Perifa Sustentável.

O Instituto, que tem sede na Brasilândia, zona norte de São Paulo (SP), nasce de uma mobilização de um grupo de jovens pretas(os) e indígenas engajado na questão climática. A organização busca construir uma nova agenda de desenvolvimento sustentável para o Brasil a partir da justiça social e ambiental, e democratizar os debates acerca da Agenda 2030 e dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).

Ao todo, são 17 Objetivos que fazem parte da Agenda 2030, proposta pela ONU para os seus países membros em 2015. A ação contra a mudança climática, por exemplo, é tema do ODS 13. Mahryan explica:

“Nós atuamos por meio de ações territoriais, advocacy, projetos transformadores, representação em espaços de decisão nacional e internacional, como a COP26, etc. Estamos buscando formas concretas de transformar a vida nos territórios periféricos, que são onde estão as pessoas mais afetadas pelos problemas resultantes da grande crise climática que vivemos hoje.” – Mahryan Sampaio 

A seguir, a jovem conta mais sobre a sua trajetória, a importância de mobilizar a juventude para que se engaje com a causa, o conceito de racismo ambiental e a maneira como as escolas podem tornar o tema mais atrativo para a sua turma.

Confira abaixo!


Mahryan Sampaio: Protagonismo de jovens periféricas(os) na Agenda Climática

Portal Cenpec: Conte-nos um pouco sobre a sua trajetória. Como você passou a ter interesse por questões ambientais?

Mahryan Sampaio: Eu sou bem nova, tenho 22 anos. Sou formada em Relações Internacionais, então estudei conteúdos de meio ambiente em escala global na faculdade.

Mas sempre me considerei ativista. Primeiramente, ativista pela igualdade de raça e gênero e, depois, pela questão do meio ambiente. Eu atuo já há alguns anos como diretora da IKMR – Eu Conheço Meus Direitos, única organização humanitária aqui no Brasil que se dedica especificamente às crianças em situação de refúgio. Hoje, atendemos quase 900 crianças refugiadas.

Foi a partir do refúgio que eu tive noção da questão ambiental, como ela impacta todo o mundo de forma diferente e de como existe esse fosso de injustiça – apesar de que, à primeira vista, elas possam parecer duas questões completamente diferentes.

Grande parte das pessoas refugiadas no Brasil são africanas, que se refugiaram em função de desastres naturais, principalmente devido à desertificação. Esse é um fenômeno ocasionado pelas mudanças climáticas. Então grande parte das(os) atendidas(os) são refugiadas(os) climáticas(os).

Eu não tinha contato com esse tema, mas conforme fui trabalhando com esses efeitos da agenda climática no meu dia a dia e também percebendo que ela impactava diretamente a minha realidade como mulher preta que mora em áreas extremas da cidade (ou seja, o racismo ambiental), a importância do tema foi fazendo mais sentido para mim.

Portal Cenpec: O que é racismo ambiental?

Mahryan Sampaio: Primeiro, vale explicar o termo injustiça ambiental, utilizado no mundo todo para falar que existem pessoas que sofrem mais que outras com as mudanças climáticas e os desastres ambientais e naturais. O racismo ambiental é um termo guarda-chuva que usamos para descrever a injustiça ambiental no contexto racializado.

No Brasil, é muito importante que a gente tenha bem claro quais são os marcadores sociais da diferença quando a gente se refere a essas pessoas mais injustiçadas. 56% da população brasileira é negra (pessoas pretas e pardas) e temos um volume muito grande de população indígena, seja em território originários ou em retomada (expressão que utilizamos para designar pessoas que se identificam racialmente e etnicamente como indígenas, mas estão nesse processo de retomada e reconhecimento).

O racismo ambiental explica como, globalmente, as comunidades de minorias étnicas são submetidas muito mais a situações de degradação ambiental e são mais afetadas pela crise climática. No caso do Brasil, estamos falando das pessoas pretas, pardas e indígenas. Ou seja, ele se refere também ao racismo estrutural que a gente tem na nossa sociedade.

Portal Cenpec: Que situações representam essas injustiças ambientais, na prática?

Mahryan Sampaio: Podem ser desde a falta de acessibilidade a recursos naturais – por exemplo, acesso a ar limpo e água portável – até a não representatividade na tomada de decisão a respeito das questões ambientais. No caso dos povos originários, por exemplo, seria a exclusão dos próprios povos pertencentes à localidade nos processos referentes à posse dos territórios tradicionais e quilombolas.

É evidente que as pessoas pretas, indígenas e pardas têm muito mais dificuldade de acesso a recursos naturais, seja pelo território em que residem ou pela situação mesmo de racismo, que os impede de acessar serviços básicos.

 

Portal Cenpec: Você teve contato com esse tema na escola, durante o ensino médio? Como ele era abordado?

Mahryan Sampaio: Sim, e a forma como estudei a questão fez toda a diferença. Eu não estudei em escolas públicas, estudei em escolas particulares com bolsas por rendimento.

Desde o fundamental, eu tinha uma disciplina que, na época, era chamada “Cidadania e responsabilidade social”. Ela tinha um caráter extremamente interdisciplinar, ou seja, dialogava com História, Geografia, Matemática etc. Foram nessas aulas que eu tive mais contato com temas como aquecimento global, por mais que eu enxergasse de uma forma um pouco mais distante. A partir daí, eu comecei a realizar ações que traziam o tema para o meu cotidiano.

 

Portal Cenpec: O racismo ambiental é uma temática presente na vida das(os) jovens das periferias?

Mahryan Sampaio: Durante muito tempo, quando falávamos de meio ambiente no Brasil, tínhamos uma narrativa que era extremamente branca e europeia. Os temas de meio ambiente e crise climática eram abordados com falas como “Temos que barrar o derretimento das geleiras!” ou “Os ursos polares serão extintos!”.

Mas não temos ursos polares ou geleiras no Brasil. Não é a nossa realidade. Logo, as pessoas não se identificavam com esse assunto e achavam que mudanças climáticas e ODS pareciam ser coisas muito distantes.

Mas muito pelo contrário. Essas são questões extremamente aplicáveis no nosso cotidiano. Por isso, é preciso abordar a forma como o clima nos afeta, em nosso território: os riscos de extinção das espécies brasileiras, o aumento do nível do mar nas cidades costeiras, a questão do entulho para quem vive na periferia ou as super ondas de frio e de calor, que impactam quem está nos contextos urbanos.

Se você explica os impactos da crise climática para as(os) jovens de territórios periféricos mostrando por que elas(es) vão sentir muito mais as ondas de calor se moram em uma casa que não é feita de tijolos e cimento, a questão vai fazer muito mais sentido para elas(es). Esse é o link que deveríamos estar fazendo – e é essa relação que temos começado a focar no próprio Instituto Perifa Sustentável.

Nas periferias, esse é um movimento que tem ganhado corpo gradativamente. Não estamos no ponto de pensar: “elas(es) já sabem tudo sobre crise climática, não há mais sobre o que educar”. Há muita coisa para ser discutida e aprendida, mas já existem sim muitos projetos inovadores ocorrendo nesses espaços, por conta da resiliência que existe nas comunidades brasileiras. Elas(es) só não são chamadas(os) de “intervenção ambiental”, “ação territorial” ou “desenvolvimento sustentável”.

Então é necessário fazer também esse contramovimento de ouvir, identificar e conhecer práticas e incentivos que já acontecem nas periferias e fazer esse link com as questões ambientais e climáticas ali existentes.

 

Portal Cenpec: Qual a importância de engajar a juventude periférica nessa agenda?  

Mahryan Sampaio: É importante lembrar que a própria ONU, com a Agenda 2030, pressupõe que os Estados, os líderes mundiais e as empresas devem se responsabilizar e tomar medidas com relação às mudanças climáticas globais. Mas não só. Se a gente não engajar toda a sociedade mundial, não conseguiremos alcançar os 17 Objetivos até 2030.

As(Os) jovens e a sociedade civil organizada estão percebendo que esses líderes, empresas e governos não estão investindo tempo e recursos suficientes para se adaptarem a esses riscos. Nesse cenário, surge esse novo ator, que ganha muito mais protagonismo, que é, se não a(o) jovem ativista climático, minimamente aquele que tem noção das questões de meio ambiente, desastres naturais e aquecimento global para falar sobre isso.

Essa juventude surge como um furacão: ela articula políticas, está mais voltada a escolher opções baseadas na natureza, evidencia os custos da adaptação climática. Ela não comunica o clima de uma forma tradicional, velha e antiquada, como acontecia nos últimos tempos. Ela rompe com essa visão coloquial e europeia, e começa a relacionar as questões climáticas e ambientais ao próprio cotidiano brasileiro e à necessidade de mudanças urgentes, em todas as esferas (comportamental, política, social, econômica) – e por isso ela é tão importante.

Temos expoentes globais dessa visão, como a Greta Thunberg, que foi responsável por pressionar as pessoas mais poderosas no combate ao clima no Parlamento da Suécia. Mas também temos jovens brasileiros com iniciativas inovadoras que não tem a mesma visibilidade que a sueca.

Nesse sentido, incluo nós do Instituto Perifa Sustentável, que estamos nesse movimento de comunicar para as comunidades, as favelas e as escolas a questão climática de uma forma que faça sentido, e adequando o tema à faixa etária.

Entendemos que a maior parte das juventudes de escolas particulares já tem uma noção das mudanças climáticas e aquecimento global. Mas a grande maioria das(os) brasileiras(os), que são as(os) periféricas(os), ainda não tiveram esse contato. Por isso buscamos trazer uma narrativa que seja brasileira, que se relacione com o que eles veem no dia a dia. Essa é a nossa contraposição, porque, se tem alguém que deveria estar falando de meio ambiente, esse alguém somos nós, os principais afetados.

Ao trazermos a juventude para o debate, percebemos que não estamos só cuidando do futuro, mas também do presente.

Portal Cenpec: Como você vê o papel das(os) docentes e da escola na abordagem da questão do racismo ambiental e da agenda climática com as(os) estudantes? 

Mahryan Sampaio: O apoio da escola nesse processo é fundamental, porque a gente entende que os jovens e adolescentes passam a maior parte do tempo na escola e, diferentemente das escolas particulares, que costumam ter iniciativas nesse sentido, as escolas públicas realmente tem que estar dispostas a inovar e a abraçar essa ideia. Isso é um grande desafio.

Nesse sentido, como trabalhar com as(os) professoras(es) para comunicar esses conteúdos? A formação docente é uma etapa fundamental nisso, mas é preciso ter profissionais abertas(os) a comunicar as questões de clima e de meio ambiente de forma extremamente interdisciplinar. Não só abordar a questão em Biologia, falando de meio ambiente, mas também em Geografia e História, falando do deslocamento de refugiadas(os) e imigrantes, por exemplo.

Em uma aula de Geografia, cabe muito bem falar sobre a questão da contaminação pela extração de recursos naturais e industriais que ocorre em territórios de populações tradicionais indígenas e quilombolas, e trabalhar como elas vivenciam esse risco de forma interdisciplinar, da perspectiva da Sociologia, da Biologia etc.

Precisa ser uma abertura para uma comunicação autônoma, que não seja pautada por uma palestra esporádica que um instituto dá nas escolas. Elas precisam entender que, quando as(os) jovens são comunicadas(os) sobre como a crise climática as(os) afetam, elas(es) podem ter uma inquietação, uma eco ansiedade, e a coordenação precisa estar preparada para lidar com essas emoções.

Além disso, há um contraste intergeracional e as(os) educadoras(es) precisam entender que, apesar de estarem ali para ensinar, muitas ideias e questionamentos vão partir das crianças e adolescentes, e que elas são potentes para gerar mudanças. Não queremos comunicar a crise climática como um fenômeno que acontece no Brasil e no mundo e que está fadado ao fracasso. Esses profissionais devem incentivar essas(es) jovens, a partir do conteúdo que foi ministrado, a ser um grande agente de transformação social, se quiser.

No segundo semestre deste ano, pretendemos lançar um programa que seja direcionado às escolas públicas, incentivando os alunos a fazerem as suas próprias intervenções e montarem os seus próprios coletivos. Para nós, a chave é levar a questão ambiental para além da sala de aula, proporcionar projetos escolares que sejam práticos, de intervenção no território, que realmente coloquem essa juventude com a mão na massa.

#Envolverde