Em workshop para jornalistas, especialistas vão além do projeto que quer transformar o Código Florestal em uma lei para o agronegócio: a discussão tem a ver com o futuro do Brasil.
“O projeto de lei foi feito na medida para os que nunca cumpriram a legislação.” As palavras, sobre a proposta que pretende derrubar o Código Florestal, são do advogado Gustavo Trindade, que chefiou a consultoria jurídica do Ministério do Meio Ambiente. Trindade falou no dia 15, na Universidade de Brasília, para cerca de 25 jornalistas que acompanham o assunto. Com palestrantes acadêmicos, juristas e de ONGs, o encontro foi organizado pelo Greenpeace, SOS Mata Atlântica, WWF e Fundação Boticário.
O evento aconteceu enquanto o Congresso recomeça a corrida por um Brasil com ou sem florestas. No dia 16, o deputado Aldo Rebelo (PCdoB–SP), relator do texto aprovado pela Câmara que desfigura a lei, participou de audiência pública com as comissões do Senado que vão avaliar o texto. Em discussão, muito mais do que um emaranhado de regras, está o futuro que o Brasil quer seguir.
“O Brasil é o país com mais condições para liderar um novo modelo econômico, do Século 21. Poderíamos ser o país líder na economia verde. Mas, com esse Código Florestal que estão querendo aprovar, nunca vamos chegar lá”, previu o superintendente de conservação da WWF, Cláudio Maretti, que fechou o ciclo de debates com os jornalistas.
Ao lado da coordenadora da Iniciativa de Mudanças Climáticas da The Nature Conservancy (TNC), Fernanda Carvalho, Maretti falou da oportunidade e da vantagem que o Brasil tem para se firmar como potência mundial. Dono de uma das maiores biodiversidades do mundo, o país pintou sua imagem de verde ao reduzir o desmatamento nos últimos anos, e se firmou como uma das lideranças nas negociações internacionais do clima. Com a retomada da devastação na Amazônia nos últimos meses e com perspectivas de derrubar sua legislação ambiental, tudo isso pode ser jogado para o alto. “Esse papel o Brasil passa a perder se o novo Código Florestal for aprovado.”
Não são palavras ao vento. De dentro das universidades e institutos de pesquisa, sobram dados que mostram como o Brasil sai perdendo se não cuidar de suas florestas. Citando um estudo do Observatório do Clima, Fernanda comparou as metas de redução de emissões que o país assumiu mundialmente e o tanto de carbono que vai jogar na atmosfera se o novo Código virar lei. Botando na ponta do lápis somente o que seria perdido de vegetação nas Áreas de Preservação Permanente (APP), os números já chegariam a 570 milhões de toneladas de carbono. “O novo Código Florestal põe em xeque a capacidade política do Brasil de atingir suas metas internacionais”, garantiu Fernanda.
Nas entrelinhas
À primeira vista, o alerta dado por Fernanda e Maretti pode parecer exagero. Mas basta deter um pouco mais o olhar sobre o texto defendido pelos ruralistas para ver que o perigo mora nos detalhes. Foi o que fez o advogado Gustavo Trindade, da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Após fazer uma análise meticulosa do projeto, não lhe restou dúvidas: “ele foi definido para isentar aqueles que desmataram toda sua propriedade”.
A anistia surge por todos os cantos. Assim como a abertura para que a produção continue avançando sobre as matas. Esses dois aspectos aparecem, por exemplo, quando o texto diz que pequenos lagos e lagoas naturais deixam de ser APP; quando afirma que o poder público não precisa mais autorizar intervenções nessas áreas; ou quando define que a Reserva Legal de propriedades de até quatro módulos passa a ser só o que restou de floresta até 2008: se não sobrou uma árvore em pé, tudo bem, é a vida.
O caminho da produção, porém, poderia – e deveria – ser outro, mais moderno e alinhado com um mundo que enfrenta uma anunciada crise climática. Foi o que apontaram os estudos de Gerd Sparovek, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) e Britaldo Soares Filho, da Universidade Federal de Minas Gerais. No lugar de um agronegócio que se espalha para os lados, com uma expansão que custa largas áreas de floresta, a saída é intensificar a produção.
Usando modelos que integram diferentes bases de dados, os pesquisadores chegaram a números que ilustram essa premissa. Mesmo com o Código Florestal vigorando desde 1965, as APPs e a Reserva Legal das propriedades nunca foram respeitadas. Nos cálculos de Sparovek, 43 milhões de hectares de APPs foram destruídas ilegalmente, enquanto para Reserva Legal o número é de 42 milhões. Segundo Britaldo, esse passivo ambiental das propriedades privadas jogou na atmosfera em torno de 5,9 gigatoneladas de carbono.
A hora, dizem os dados, é de modernizar a produção. Os caminhos estão dados: segundo pesquisa do professor da USP, pelo menos 60 milhões de hectares de áreas de pastagem têm alta aptidão para dar lugar à agricultura. Ou seja, as lavouras não precisam mais expandir para cima de floresta. A pecuária, por sua vez, também tem muito o que melhorar. Hoje, a proporção é de cerca de 1,1 cabeça de gado por hectare, quando daria para ser pelo menos 1,5, numa hipótese conservadora.
Os números ganham eco num estudo lançado há alguns meses pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e Academia Brasileira de Ciências (ABC): por conta, principalmente, do uso inadequado da terra, o Brasil tem hoje 61 milhões de hectares de terras degradadas que poderiam ser recuperadas e usadas na produção de alimentos.
Sem abrir mão do poder
Nada disso, no entanto, tem sido levado a sério pelo grupo ruralista que tenta desfigurar o Código Florestal. Para o procurador-geral do Paraná, Carlos Marés, que também participou do encontro com jornalistas, o motivo é histórico: no Brasil, terra sempre foi sinônimo de dinheiro e poder. Ao exigir que uma parcela das propriedades seja preservada para o bem comum da sociedade, o Código Florestal intervém nessa estrutura e incomoda muita gente. “O que está em disputa é a regulação, ou seja, se mexe ou não mexe nessa mercadoria chamada terra”, disse.
Colocar a mão nesse vespeiro, não é fácil. Afinal, como lembrou Marés, não é de hoje que os ruralistas gostam de dar as cartas na política brasileira. Muito mais influente há algumas décadas, o setor, porém, continua com força, tendo, por exemplo, a maior bancada no Congresso Nacional, onde tem passado o trator por cima de leis que defendem o meio ambiente. O objetivo, como sempre, é beneficiar seu grupo. Mas como observou Claudio Maretti, o Brasil não é terra de uma coisa só. Tampouco sua legislação. “O Código Florestal não mira só no sucesso da agropecuária. Ele tem que mirar é no sucesso do país.”
Para baixar as apresentações, clique nos links abaixo:
Claudio Maretti e Fernanda Carvalho
* Publicado originalmente no site do Greenpeace.